quarta-feira, 4 de março de 2015

Se eu fosse eu (RJ)

Foto: Vinícius Ventura



Teresa Hermany em cena

A complexidade da versão teatral para as obras de Clarice Lispector

            “Se eu fosse eu” é a versão teatral assinada por Delson Antunes para quinze contos da ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector (1920-1977), boa parte deles publicada no livro “A descoberta do mundo”, lançado postumamente há trinta anos. O espetáculo estreou em outono de 2013 na Casa da Leitura, mas agora finaliza segunda temporada no Teatro do Jockey, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. A montagem, um tanto longa, tem tantos méritos quanto altos foram seus desafios. Com um elenco numeroso e uma dramaturgia que parte de um lugar vasto demais, a produção atravessa com dificuldades os percalços que o teatro oferece à alta literatura de Clarice.
            A direção de Delson Antunes tem dois momentos: um bastante bom e outro nem tanto. Na abertura da peça, há o adequado privilégio à palavra, marca que define a literatura de Clarice Lispector. Os atores estão parados, olhando para o público, com poucas expressões e quase nenhum gesto, mas dizendo bem o texto que a adaptação positivamente manteve difícil em termos de teatralidade mais comum. Nesse contexto, apesar de dois quadros em que o público muda de lugar com a cena, as imagens da autora conseguem vir à audiência, proporcionando uma situação de reflexão bem própria do tom intimista que sua literatura ajudou a construir no século XX. Esses são os melhores momentos do espetáculo. No entanto, lá pelas tantas, o clima de tensão se estabelece na articulação das cenas e no interior delas. Vêm gritos, gestos fortes e expansivos, elementos que personificam (ou particularizam) os personagens até então mais dispostos a serem metáforas para o homem comum nas suas mazelas íntimas (e diferenciadas). É quando Clarice parece negativamente ter virado Nelson Rodrigues (1912-1980) e, embora contemporâneos e igualmente valorosos para a literatura brasileira, os dois autores são completamente distantes em termos estéticos. Além disso, nesse ponto do espetáculo, sessenta minutos de apresentação já se passaram e as palavras da dramaturgia já não têm a mesma força diante do público um tanto quanto cansado de tão alta literatura. Nos momentos finais, a direção de Delson Antunes, assistida por Vivian Renolli, tem o mérito de retomar os valores da abertura, voltando à elegância da reflexão, buscando voltar à construção das imagens marcantes da literatura de Clarice. Apesar dos percalços, a aventura resulta em relativamente positiva.
            Com Joana Pimenta, Juliana Stuart, Kiko do Valle, Linn Jardim, Mariana Cortines e Sara Marques no elenco, “Se eu fosse eu” tem as participações positivas de Miriam Virna e de Andrea Couto com destaques para Thiago Chagas e para Teresa Hermany. O vínculo discreto que relaciona as falas é revelado na interpretação desses últimos intérpretes citados sem comprometer o caráter reflexivo da narrativa intimista. O bom uso das pausas oxigena a fruição e possibilita o correto estabelecimento do contexto ideal para fruir essa literatura na plateia de um teatro. Neles, o teatro se curva à escrita literária sem perder a dignidade, o que é um feito!
            As bases que garantem os elogios à primeira e à última parte do espetáculo são as mesmas que possibilitam os elogios ao cenário de Miriam Virna e de Renata Caldas. O excesso do material simbólico na construção das imagens, possibilitado pelo largo uso de páginas de livros antigos espalhadas pelo chão, flores vermelhas e grades, acaba por pasteurizar o quadro geral, possibilitando um lugar neutro de onde saem essas figuras tão humanas que os contos escolhidos revelam. Boa parte dos figurinos de Vinicius Ventura age na mesma sintonia, mas outros expressam uma certa confusão que superficializa o que de mais complexo há nessa literatura: o interior de cada personagem. Há bom uso dos recursos de iluminação (Luiz Paulo Nenem) e da trilha sonora original (Pedro Verissimo e Fernando Aranha).
            Depois de explorar o universo de Caio Fernando Abreu em “Homens” (2012) e de Ana Cristina César em “Jazz do Coração” (2014), Delson Antunes dá sua contribuição à obra de Clarice Lispector. O gesto nobre deve ser aplaudido.


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FICHA TÉCNICA
Texto: Clarice Lispector
Direção e dramaturgia: Delson Antunes
Elenco: Andrea Couto, Kiko do Valle, Joana Pimenta, Juliana Stuart, Linn Jardim, Mariana Cortines, Miriam Virna, Tereza Hermanny, Thiago Chagas e Sara Marques
Cenário: Miriam Virna e Renata Caldas
Figurino: Vinicius Ventura
Iluminação: Luiz Paulo Nenem
Direção de arte: Miriam Virna
Trilha Original: Pedro Verissímo e Fernando Aranha
Visagismo: Daniel Régio
Designer Gráfico: Studio C
Designer promoção e campanha: Doria
Cinematografia: Felipe Pilotto e Motin Produções e Fernando Hurtado
Fotos do espetáculo: Vinicius Ventura
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Assistente de Direção: Vivian Renolli
Assistente de produção: Leonardo Paixão
Coprodução: Delirium Produções e Ju stuart
Realização Varal das Artes e Chagas Produções

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