quarta-feira, 4 de março de 2015

Um pai (puzzle) (RJ)


Foto: Marcelo Corrê

Ana Beatriz Nogueira em cena


Uma peça essencial ao quebra-cabeça de Lacan

O monólogo “Um pai (puzzle)” estreou na última quinta-feira, dia 20, no Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. A peça é baseada no livro homônimo escrito por Sibylle Lacan (1940-2013), filha do famoso psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), lançado há vinte anos. Adaptado pelo cineasta Evaldo Mocarzel, o texto recebeu cuidadosa direção de Vera Holtz e de Guilherme Leme Garcia e belíssima interpretação de Ana Beatriz Nogueira. Na história, Sibylle fala em primeira pessoa, expondo suas memórias acerca da relação entre ela e seu pai: lembranças tristes e alegres, momentos de toda uma vida.

A beleza da encenação de Vera Holtz e de Guilherme Leme Garcia pode ser contemplada nos dois movimentos em que a narrativa se estabelece. Enquanto a personagem Sibylle Lacan conta a sua história, o público assiste primeiro ao contexto em que as opiniões da filha por sobre o pai foram geradas. Quais os fatos que sustentam esse ponto de vista? Depois, mais para o final, é possível identificar com mais força a reviravolta, o retorno, a mudança de posicionamento. Ao longo dos noventa minutos de espetáculo, há sempre um ser humano visto a partir de sua complexidade, de seus contrastes, dos desafios que ele próprio propõe a si mesmo além de sua vida. “Um pai (puzzle)” usa da mágoa, dos ressentimentos, das expectativas frustradas para falar de um laço específico entre filha e pai, mas que bem pode ser ponto de partida para qualquer um pensar em sua família. Emocionante!

Ana Beatriz Nogueira está mais vez brilhante! Utilizando os diversos níveis do uso da voz, a atriz expõe nuances delicadas nos gestos e nas expressões faciais, revelando uso potente de cada detalhe na visualização de um quadro pleno de potências. Todo preto, o cenário de Marcelo Lipiani se divide em telas diagonais em que algumas cenas são projetadas, cubos igualmente pretos e um pequeno aquário sem peixes. A possível metáfora para lembranças que vêm à superfície em blocos, com imagens um tanto quanto apagadas, e para a memória quase sensorial guardada para a cena de encerramento ocupa lugar maravilhosamente discreto na evolução da narrativa cênica. Dessa maneira, talvez consciente da dureza dos fatos que os espectadores hão de enfrentar, Ana Beatriz Nogueira desce às profundezas do texto com delicadeza, elegância e coragem. Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia foram assistidos por Ana Nero e por Beta Perez. Maneco Quinderé assina o desenho de luz, o que dispensa a análise de elogios.

Um dos momentos mais especiais de “Um pai (puzzle)”, além da cena final, é aquele em que se ouve “Les Tendre Dangereux Visage De L’amour”, canção original da compositora mato-grossense Lucina belissimamente interpretada por Zélia Duncan (voz e violão). O momento, além de proporcionar respiro à narrativa, ajuda a consolidar a poética da obra teatral, preparando os caminhos que vão se tornando cada vez mais delicados. Assinada por Andrea Zeni e por Duncan, com assistência de Joyce Santiago, a trilha sonora participa bem principalmente nos detalhes que ajudam a interpretação e a dramaturgia em dar a ver as imagens que o texto revela.

Longe de ser uma biografia, “Um pai (puzzle)” tem o mérito de fazer, no seu título, a referência ao jogo de quebra-cabeças. A história contada por Sibylle Lacan é uma peça do quadro que constitui o que realmente aconteceu. Pode ser a peça menos conhecida, menos importante, mais subjetiva, mas sem dúvida tem a dignidade e a beleza de ser uma peça sem a qual o todo jamais ficará completo. Por isso, essencial. Aplausos.

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FICHA TÉCNICA
Elenco: Ana Beatriz Nogueira
Adaptação: Evaldo Mocarzel
Tradução: Ângela Leite Lopes
Direção: Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia
Trilha sonora: Zélia Duncan e Andrea Zeni
Direção Musical, voz e violão: Zélia Duncan
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenário: Marcelo Lipiani
Figurino: Marcelo Olinto
Fotos: Marcelo Correa
Programação Visual: Antônio Quixadá
Direção de Produção: Sílvia Rezende
Realização: Trocadilhos 1000

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