domingo, 19 de abril de 2015

Através do espelho (SP)

Foto: divulgação

Gabriela Duarte e Lucas Lentini


Versão simplificada do filme de Bergman


            Há méritos em “Através do Espelho”, mas essa versão para teatro dirigida por Ulysses Cruz simplifica o filme homônimo do sueco Ingmar Bergman (1918-2007). Tida como primeira parte da trilogia “O silêncio de Deus”, a obra, lançada em 1961, vencedora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro naquele ano, completa o grupo com “Luz de Inverno” (1961) e “O silêncio” (1962), todas elas tratando, de um lado, da incomunicabilidade entre Deus e os homens, e de outro, questionando a responsabilidade desses na criação de Deus. Protagonizada por Gabriela Duarte, com Marcos Suchara e Lucas Lentini, os três em melhores trabalhos que Joca Andreazza, a peça reduz a história a um drama familiar sobre a esquizofrenia infelizmente. Em cartaz no Teatro Poeira, em Botafogo, vale a pena a ver a peça para essa discussão continuar.
            A história se passa em um dia logo após a saída de Karin de um período de internação em uma clínica psiquiátrica. Ela, o marido Martin, o irmão Max e o pai David vieram passar uma temporada na casa litorânea da família, mas novos contornos dessa relação aparecem. Karin e Max estão felizes por desfrutar alguns momentos com o pai, esse sempre ausente em função do seu trabalho como escritor, que lhe deu fama internacional e quase nenhum tempo para os filhos. Max, um adolescente em plena fase de descobertas sexuais e artísticas, se sente frustrado pela pouca atenção recebida de David. Karin lê no diário do pai que ele observa a doença da filha como inspiração para seus romances, o que dá a ele uma face cruel. O amor, bastante próximo do que chamamos de caridade, pontua a relação de Martin, que é médico, com sua esposa. No entanto, em qualquer dos filmes de Bergman, os personagens atendem menos a uma história dramática clássica e mais à viabilização de uma tese artística, um conceito estético. “Através do Espelho” parte de um versículo da primeira carta de Paulo aos Coríntios: “Agora vemos através de um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face. Agora conheço de modo imperfeito, mas então conhecerei como sou conhecido.” (1Cor 13, 12.) No filme, Karin acredita ouvir Deus. “Mas o deus que veio era uma aranha!”, diz. Nas cenas finais, a filha e o pai conversam sobre a existência de dois mundos, quando ela chora, dizendo não conseguir viver entre esses dois. Diferente dela, o pai e o irmão expurgam através da arte seu universo interior, mas resta à Karin ser a própria arte talvez. Para Bergman, deus é uma criação humana e a ausência de comunicação entre esses dois mundos condena um à destruição do outro. Nesse sentido, levar à cena “Através de um espelho” apenas a partir do ponto de vista da esquizofrenia de Karin e da desestrutura familiar é valorizar a parte menos relevante dessa grande obra original.
            Não há jeito certo ou errado de atualizar uma obra de arte para outra linguagem, mas a concepção do diretor Ulysses Cruz, assistido por Leonardo Bertholini, oferece pouco a Bergman e consequentemente aos atores, comportados dentro do espetáculo a que se propuseram. Gabriela Duarte, o melhor trabalho do elenco, dá vida a uma Karin sensível, com alguns níveis interpretativos expressos modestamente. É interessante ver o modo como sua protagonista vive em um mundo à parte, esse talvez um dos pontos que sobreviveram à visão do diretor sobre o filme. Marcos Suchara (Martin) e Lucas Lentini (Max) também apresentam boas construções dentro do proposto, com relativa potência no que cada personagem possibilita. Joca Andreazza, fleumático, sem conseguir pronunciar uma só frase sem se movimentar, reduz o pai a uma versão nervosa e afetada da figura complexa que tinha em mãos.
            No contexto dos anos 60, o cenário realista atendia ao propósito surrealista do filme, que precisava partir de um lugar seguro (sem dúvidas ao espectador) para depois levá-lo para zonas mais densas. Aqui, noutra linguagem e 50 anos depois, a bela cenografia de Lu Bueno corrobora corretamente com a visão do diretor, ajudando a superficializar os personagens. Os figurinos de Cássio Brasil e a luz de Domingos Quintiliano, ambos também só bonitos, agem no mesmo sentido. A trilha sonora original de Daniel Maia, uma sequência de músicas em piano eletrônico, aproxima negativamente a peça do melodrama, adocicando ainda mais as desventuras de Karin, aqui uma heroína.
            Embora Karin seja a personagem mais vista no filme e na peça, é David a chave para “Através do espelho”. Tendo comido a maçã, isto é, de posse dos segredos da vida e da morte, ele é a metáfora para entender essa obra de Bergman em sua essência, essa cuja forma está citada nessa versão de Ulysses Cruz.


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Ficha técnica:
Texto: Ingmar Bergman
Versão teatral:Jenny Worton
Tradução: Yara Nagel
Adaptação: Marcos Daud
Dramaturgia: Valderez Cardoso Gomes
Direção: Ulysses Cruz
Diretor Assistente e Diretor de Movimento: Leonardo Bertholini
Elenco: Gabriela Duarte, Joca Andreazza, Marcos Suchara e Lucas Lentini
Preparação vocal: Renata Ferrari Rezende
Cenografia: Lu Bueno
Assistente de Cenografia: Danny Cattan
Designer de Luz: Domingo Quintiliano
Figurinos: Cassio Brasil
Trilha Original: Daniel Maia
Diretor de Palco: Angelo Máximo
Contrarregra: Alessandro Dourado
Operador de som: Fernando Castro
Operador de luz Walace Furtado
Direção de Produção: Giuliano Ricca
Produtores Associados: Gabriela Duarte e Giuliano Ricca
Realização: Ricca e Plateia Produções

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