quinta-feira, 30 de abril de 2015

Bom-Crioulo (RJ)


Foto: Renato Mangolin
Luis Salem

Uma visão romântica que empobrece a obra original

O maior problema do espetáculo “Bom-Crioulo” é a adaptação assinada por Luis Salem, também ator do monólogo dirigido por Gilberto Gawronski. Ao escolher o romantismo para recontar a história escrita por Adolfo Caminha, a produção tirou do original seus maiores méritos. Lançado em 1895, o romance realista naturalista narra o namoro vivido pelos marinheiros Amaro e Aleixo. O original, porém, não se posiciona por qualquer dos personagens, limitando-os a apresentá-los diferente do que faz essa montagem infelizmente. A peça está em cartaz na escuna R. F. Amaral nas noites de terças-feiras até o fim de maio, sendo encenada durante um passeio pelas águas da Baía de Guanabara da Marina da Glória até a Urca.

Depois de algum sucesso com “A normalista”, Adolfo Caminha (1867-1897) retornou a um tema polêmico em “Bom Crioulo”. Escrito sob forte influência do realismo naturalismo de Émile Zola, o livro narra o encontro vivido por Amaro, um negro alto e forte, com Aleixo, um alemão franzino e de olhos claros, em uma de suas viagens como oficiais da marinha brasileira na segunda metade do século XIX. Tendo iniciado um romance a bordo, o casal vive o ponto alto de sua relação em terra, quando os dois, em licença temporária, alugam um quarto no centro do Rio na pensão de Dona Carolina. A terceira parte da história compreende os desencontros entre eles quando Amaro volta ao trabalho. O desfecho é trágico para ambos. Ao escrever a história, Caminha conferiu a todos os personagens, e não apenas ao protagonista, um conjunto de características complexas. Sem passado conhecido, o negro forte e amável também será bêbado, instável emocionalmente e assassino. Descrito a partir de suas características femininas, Aleixo viverá um relacionamento heterossexual. Dona de uma “mente aberta” e disposta a abrigar carinhosamente o casal a princípio, Carolina contribuirá para o afastamento dos dois. Tal qual o cortiço de Aluísio Azevedo, o navio onde os protagonistas se conhecem, a pensão onde morarão e a própria cidade do Rio de Janeiro são lugares apresentados como organismos repletos de vida e desprovidos de moral. Tudo isso é muito diferente da história cheia de lágrimas narrada por Salem nessa dramaturgia infelizmente.

O pior momento da dramaturgia de “Bom-Crioulo” é uma cena em que a narrativa se interrompe e Luis Salem se propõe a discutir a obra. Nesse trecho, uma série de pontos são levantados, boa parte deles inúteis para o espetáculo e alguns inverídicos também. A publicação do romance “Bom-Crioulo” foi lucrativa para Adolfo Caminha, mas irrelevante para o mercado editorial brasileiro. A obra obteve apenas duas críticas literárias, tendo despertado alguma atenção principalmente porque, em 1895, ano de sua publicação, Oscar Wilde estava sendo julgado na Inglaterra por relações homoafetivas. O livro também não foi o primeiro a pautar a relação entre dois homens, tendo vindo depois de “Um homem gasto” (1885), do carioca Ferreira Leal, e de “O barão de Lavos” (1891), do português Abel Botelho, sendo que Raul Pompeia já tinha tratado do tema em “O Ateneu” (1888) e Azevedo em “O Cortiço” (1890). (No século XX, descobriu-se que o gaúcho Qorpo Santo foi quem primeiro tratou do assunto, em 1866, na peça “A separação de dois esposos”.) Adolfo Caminha, que fez parte da Marinha Brasileira até 1890, se baseou em dois fatos reais para escrever a história de Amaro e de Aleixo - o crime do Largo do Mitelo em abril de 1886 (Lisboa) e o caso do pseudo-assassinato do grumete André Nogueira em março de 1888 (Rio) -, mas jamais recebeu uma única reprimenda pela publicação da obra. Em 120 anos, o livro foi censurado uma única vez. No fim dos anos 30, por ocasião do lançamento da sua segunda edição (!), a publicação foi acusada de comunista, mas, depois de dois meses, o processo foi revogado tão logo o erro foi identificado. Ou seja, diferente do que é dito no espetáculo, a obra não foi proibida, mas apenas esquecida infelizmente.

Em se tratando da encenação, se dá com dificuldade a relação entre o ator e os personagens que ele interpreta. Luis Salem, que não se parece fisicamente nem com Amaro, nem com Aleixo, talvez tivesse melhor resultado se atualizasse para a cena a impessoalidade do narrador (onisciente e onipresente) da obra original. Ao contrário disso, posicionando-se em favor de Amaro, impõem a si desafios que não são vencidos, dificultando a fruição do monólogo que dura noventa minutos. A trilha sonora, com direção musical assinada por André Poyart, pontua essa concepção difícil para a narrativa.

Com o interessante uso de uma escuna como lugar de apresentação, o espetáculo “Bom-Crioulo” tem, como maior mérito, a possível relação entre o ambiente marítimo e a história. Adolfo Caminha não está bem representado aqui.

*

Ficha Técnica: 
Adaptação: Luis Salem
Direção e Cenografia: Gilberto Gawronski
Elenco: Luiz Salém e André Poyart
Direção Musical: André Poyart
Figurino: Antonio Medeiros e Tatiana Rodriguez
Desenho de Luz: Maneco Quinderé
Fotos: Renato Mangolin
Assessoria de Comunicação: PAGU Comunicação – Carla de Gonzales
Diretor de Palco: Jota Bruno
Realização: Luis Salem e Oya Turismo

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