quarta-feira, 20 de maio de 2015

Como a gente gosta (RJ)


Foto: divulgação

Camilla Amado e Pedro Paulo Rangel


Um péssimo rascunho de Shakespeare

O diretor de televisão Vinicius Coimbra estreia mal como diretor de teatro com essa produção de “Como a gente gosta”. Além da direção, ele assina a tradução, a adaptação, o cenário e o figurino do espetáculo cujo texto lembra - de muito longe - a única comédia pastoral do grande dramaturgo britânico William Shakespeare, “As you like it”. É uma pena. Em cartaz no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, a peça traz Pedro Paulo Rangel, Camilla Amado, Jitman Vibranovski, Patrícia Pinho e Xando Graça, entre outros, além de uma ótima ficha técnica, em interpretações muito aquém do que sabemos que eles podem oferecer. Vale o elogio ao ator João Lucas Romero, o único a tirar bom proveito da equação entre desafios e resultados.

Escrita no final do século XVI, “As you like it” é chamada de comédia pastoral pela importância que a vida pastoril tem na história. Destituído do seu próprio ducado, o Duque vai morar na floresta acompanhado de alguns nobres que se negaram a serem liderados por Frederico, seu irmão mais novo, agora no comando da região. A peça começa com a briga de outros dois irmãos: o jovem Orlando se ressente do modo como é tratado por Olivério, seu irmão mais velho, depois da morte do pai de ambos. Por causa disso, aceita duelar com o temível lutador Charles, vencendo surpreendentemente a luta. Na hora de receber o prêmio, Frederico fica sabendo que Orlando é filho de um grande amigo do duque deposto e expulsa o jovem da corte, mandando embora também sua sobrinha Rosalinda, por quem Orlando é apaixonado. Célia, filha de Frederico, se rebela contra o pai e resolve acompanhar sua prima. Para se proteger dos perigos da floresta, Rosalinda faz de conta que é homem, passando a ser chamada de Sebastião (Ganimedes, no original), enquanto Célia assumirá o nome de Velcra (Aliena, no original). Orlando não reconhece Rosalinda quando vê Sebastião e esse promete ajudar o novo amigo a curar-se do amor, propondo que, se Orlando tratar Sebastião como se fosse Rosalinda, ele logo irá se esquecer da amada que ele pensa ter ficado na corte. Claramente, Rosalinda quer testar o amor de Orlando, que continuará apaixonado por ela. Enquanto isso, Frederico exige que Olivério traga de volta Orlando, com quem ele pensa estar sua filha Célia, mas, na floresta, o próprio Frederico irá se redimir de seus pecados, devolvendo o ducado para o seu irmão no fim da história. Nesse sentido, o grande conflito de “As you like it” está na oposição entre a vida na floresta e a na corte. Enquanto, na primeira, as pessoas repartem o que têm, as hierarquias não são barreiras entre os homens e todos são felizes, na segunda, espetáculos de violência são assistidos por todos, reina a ambição, a corrupção e os vícios morais. Na versão de Vinícius Coimbra, nem mesmo uma fração dessa complexidade está contemplada.

A péssima adaptação assinada por Coimbra se concentra em algumas partes da trama entre Orlando e Rosalinda em evidentes más opções do início ao fim. Em primeiro lugar, a história de amor de Orlando e de Rosalinda não tem força se não estiver amparada por todo o contexto que lhe dá sustentação. Vale lembrar que, até a metade do século XVII, Rosalinda era interpretada por um ator e não por uma atriz. Ou seja, quanto a esse específico ponto de toda a peça, era muito mais engraçado para o público elisabetano, além de qualquer outra coisa, o fato de um ator interpretar uma mulher que finge ser um homem enquanto está apaixonada por outro homem que não sabe que esse homem é, de fato, uma mulher. Para adiante disso, a evolução de rimas e de prosa, no original, tem sentido específico: Shakespeare usou nesse texto um para os diálogos e outro para os solilóquios, enquanto aqui a tradução de Gabriel Falcão e de Coimbra não faz diferença quanto aos usos, é abandonada em vários momentos do texto e é simplesmente esquecida quando os atores preenchem os espaços com “cacos” à revelia. Referências ao mundo contemporâneo não só deixam pensar que os realizadores encontram tédio na comédia shakespeareana (mal produzida!), mas também auxiliam a tornar tudo muito superficial, pobre, tolo. Nessa montagem, personagens desaparecem ao longo da narrativa (a velha Ada – o servo Adam, no original – é esquecida, por exemplo) ou perdem a importância (Célia e Jacques, para citar dois) fora o fato de que há outros que nem aparecem na adaptação, como o deus Himeneu que Shakespeare faz vir para realizar os casamentos.

Sobre as interpretações, a encenação parece ter valorizado a primeira possibilidade de cada personagem, o que é muito pouco diante da experiência consagrada de Pedro Paulo Rangel (Bobo), Camilla Amado (Ada e Audrey), Jitman Vibranovski (Frederico e Duque), Patrícia Pinho (Célia) e de Xando Graça (Charles e Jacques). Em outras palavras, não lhes foi feito desafio algum de maneira que tudo o que se vê é muito tolo. Na proposta de tornar “As you like it” uma farsa pobre, a habilidade elogiosa de um intérprete em construir tipos acaba por ser essencial. Nesse sentido, João Lucas Romero (Olivério, Le Beau e vários outros) é quem oferece o melhor trabalho, destacando-se em relação a Alexandre Contini (Guarda, Silvio e outros) que tenta o mesmo sem sucesso infelizmente. Gabriel Falcão (Orlando) e Priscila Steinman (Rosalinda), os protagonistas, apresentam seus personagens mais próximos da (má) linguagem televisiva, com expressões faciais e corporais muito sutis, movimentos e entonações ausentes e muita superficialidade.

A importância imensa da floresta nesse texto faz do cenário e do figurino (Vinícius Coimbra) de “Como a gente gosta” seu pior resultado. Caules secos de madeira em chão branco diante de ciclorama colorido monocromaticamente (a iluminação é de Paulo César de Medeiros) poderia ser um lindo cenário para “Esperando Godot”, de Beckett, mas não tem absolutamente nada a ver a comédia pastoral de Shakespeare. Esse lugar onde a maior parte da história acontece e que é quem tem a habilidade de modificar os homens e de receber um deus, nessa versão, só expressa a falta de dinheiro, de criatividade e de pesquisa da produção para algo mais digno do seu público. O mesmo se deve dizer da opção dos figurinos. Os pés descalços (ou com meias em alguns atores), as calças jeans, as camisetas pretas e com os nomes dos personagens gravados e os acessórios paupérrimos produzem um visual nada melhor que horroroso.

Não é preciso ser Bárbara Heliodora (1923-2015) para defender William Shakespeare ou qualquer autor da história da dramaturgia, mas é preciso lembrar do respeito que se deve ao teatro, aos seus realizadores e realizações e ao seu público diante de produções como essa. Que a carreira de Vinicius Coimbra avance no teatro com a mesma qualidade com que evoluiu a sua na televisão. Estaremos aqui para aplaudir.

*

Ficha técnica: 

Como a gente gosta (“As you like it”)
Autor: William Shakespeare
Tradução: Vinicius Coimbra e Gabriel Falcão
Direção, concepção, figurino, cenografia e fotografia: Vinicius Coimbra
Elenco: Pedro Paulo Rangel, Camilla Amado, Priscila Steinmann, Gabriel Falcão, Patrícia Pinho, João Lucas Romero, Alexandre Contini, Xando Graça e Jitman Vibranovski
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha sonora: Marcelo Alonso Neves
Preparação corporal: Marcia Rubin
Comunicação visual: Bruno Dante
Adereços: Sol Azulay
Direção de Produção: Dea Martins / Kauidea Produções Artísticas
Produção Executiva: Dea Martins
Assistente de produção executiva: Ana Beatriz Figueras
Apoio de produção e diretor de palco: Marcelo Gomes

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