quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Caranguejo Overdrive (RJ)


Carolina Virguez à frente, Matheus Macena ao centro e Eduardo Speroni ao fundo

Foto: divulgação

Espetáculo contribui com a reflexão sobre as mudanças na geografia da cidade

“Caranguejo Overdrive”, um dos espetáculos mais bem comentados no Rio desde “Salina”, “Krum” e “Anti-Nelson Rodrigues”, terminou outra curta temporada no Mezanino do Espaço Sesc Copacabana no último domingo, dia 16 de agosto. Com texto de Pedro Kosovski e direção de Marco André Nunes, a peça marca, ao lado da montagem “Laio & Crísipo”, o aniversário de dez anos da Aquela Cia. de Teatro. Além dos excelentes trabalhos de interpretação de Carolina Virguez (Prostituta) e de Matheus Macena (Cosme), a montagem tem o mérito de relacionar referências distintas, sugerindo debates sobre as consequências das mudanças na geografia da cidade ao longo da história. Na dramaturgia de Kosovski, estão lá o romance “Homens e Caranguejos” (1967) do geógrafo pernambucano Josué de Castro (1908-1973), o manifesto "Caranguejos com cérebro" (1992) e o movimento Manguebeat impulsionados pelo músico Chico Science (1966-1997), e diversas histórias acerca da construção do Canal do Mangue (1860) na região da Praça Onze e das consequências da Guerra do Paraguai (1864-1870), além de fatos recentes da política nacional e local. Na direção de Nunes, há a exploração de códigos do teatro contemporâneo na busca pela representação da complexidade da situação atual do nosso país. Vale a pena ver.

Na história original escrita por Pedro Kosovski, o personagem Cosme (Matheus Macena) sobrevivia no Saco de São Diogo, região pantanosa que hoje se estenderia da Praça Onze até a Baía de Guanabara. Nesse manguezal, famílias pobres dividiam espaço com caranguejos, completando seu ciclo natural: os homens comiam seu caldo e os caranguejos suas fezes. Iniciada a Guerra do Paraguai, o personagem foi enviado para o campo de batalha, onde a fome, o frio e a água podre, além do horror das milhares de mortes, lhe trouxeram a cólera e a loucura. De volta à capital do império, Cosme encontra um Rio de Janeiro diferente: obras por toda a parte, sobreviventes de guerra e muitos imigrantes. Aproximando aquele período do atual, quando as obras de construção do Porto Maravilha mais uma vez modificam os contornos dessa região da cidade e identificando a relação entre o homem pobre e o caranguejo que a dramaturgia sugere, o espectador sai do teatro com algumas reflexões a fazer. Isso é um mérito.

A vitimização do personagem Cosme é pouco
Coroado aos quatorze anos em 1841, Dom Pedro II herdou um país falido e que, ainda por cima, estava dividido em diversas batalhas locais. De volta da Inglaterra, que vivia o auge da Revolução Industrial, o gaúcho Irineu Evangelista de Souza, intitulado Barão de Mauá em 1854, trazia uma grande soma de dinheiro com a qual deu início à indústria do aço no país e à reabertura do Banco do Brasil (que estava fechado há quase vinte anos). De engenhos de açúcar a navios (negreiros) a vapor, essa era a chance de que o imperador precisava para controlar tanto norte e nordeste quanto sul e toda a região do Rio da Prata no continente. No Rio de Janeiro, foram financiadas, nesse período, por acordos entre a coroa e Mauá, obras por toda a parte, entre elas, o Canal do Mangue de São Diogo, cujo projeto inicial já existia desde meados do século XVIII. A obra ligava o Campo de Santana ao Palácio de São Cristóvão e ficou pronta apenas três anos depois de ter sido iniciada, em 1857. Foi, no entanto, em 1864, que um dos capítulos mais sangrentos da história do Brasil teve início.

A Guerra do Paraguai, ou o “Genocídio contra os paraguaios”, é uma ferida esquecida, mas ainda muito aberta na história da América Latina. Foi nela que o nosso “bonzinho” Brasil, ao lado de uma derrotada Argentina e um inexistente Uruguai dizimou 75% da população paraguaia (boa parte degolada em campo de batalha) de maneira que, até hoje, nunca mais pode aquele país se reerguer. Em 1865, de um lado, terminava a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, acabando com os grandes latifúndios (escravocratas) produtores do algodão de que precisava a Inglaterra vitoriana. De outro, o sul da América do Sul (que produzia algodão) estava dividido entre blancos (favoráveis ao governo protecionista do ditador paraguaio Solano López) e colorados (favoráveis ao liberalismo estimulado pela Inglaterra através do imperador Pedro II no Brasil e do presidente Bartolomeu Mitre na Argentina). A intervenção do governo brasileiro no Uruguai foi devolvida com a invasão dos paraguaios ao Brasil. Formada a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), começou aí a guerra que mergulhou de vez a América Latina em dívidas estratosféricas com a coroa inglesa, matou um milhão de pessoas nos quatro países, não libertou os escravos, garantiu a existência da grande propriedade rural e deu força para o exército que, cem anos adiante, iria continuar com grande prestígio em todo continente.

Na história recente do país, a operação Lava Jato expõe a relação de diversas empreiteiras com o financiamento das campanhas através das quais os governantes se elegeram ao legislativo e ao executivo. Como pagamento pela “doação” desses empresários no momento oportuno, o jogo político parece ter favorecido o acesso deles às licitações milionárias das últimas maiores obras pagas pelo dinheiro público. De volta a “Caranguejo Overdrive”, a vitimização do personagem Cosme, ainda que rica porque ponto de partida para reflexões sobre o homem diante das transformações da cidade, é muito pouco perto das relações possíveis entre Palácio do Planalto e Quinta da Boa Vista e entre Barão de Mauá e Odebrecht. Por isso, o melhor momento de toda essa dramaturgia de Pedro Kosovski é o monólogo da Prostituta Paraguaia (Carolina Virguez) enquanto reapresenta o Brasil a Cosme, recém retornando da guerra. Nele ficam claras essas pontes de sentido bem como, em êxtase, o quanto bobagens como a namorada sem calcinha de Itamar Franco costumam parecer bem mais importantes para nós tristemente.

Carolina Virguez e Matheus Macena brilham em grandes interpretações
A direção de Marco André Nunes movimenta vários códigos do teatro contemporâneo para construir uma situação em que a trajetória e a desterritorialização de Cosme possam ser vistas a partir de maior complexidade. Assim como a dramaturgia de Kosovski se constrói pela justaposição de vários tipos textuais, a encenação apresenta diversos acordos na viabilização da narrativa. Há cenas com diálogos diretos com a plateia e outras encerradas em si, momentos em que o microfone em pedestal é utilizado e outros sem ele, quadros em que o espectador precisa dar conta de traduzir as intenções da proposta (a bacia e o plástico como recipientes da lama) e trechos em que tudo é descrito realisticamente (o uso do papelógrafo, a presença viva de caranguejos). Nesse sentido, de forma positiva, a audiência é sempre forçada a modificar sua posição diante do espetáculo, o que garante uma fruição mais politicamente ativa.

Também composto por Alex Nader, Eduardo Speroni e por Fellipe Marques, “Caranguejo Overdrive” tem seus melhores momentos nas colaborações de Carolina Virguez e de Matheus Macena. O modo como uma profusão enorme de tons aparece, ao longo da apresentação e especificamente na cena entre a Prostituta e Cosme, na interpretação de Virguez aponta ao mesmo tempo para a múltipla habilidade da atriz, para a riqueza do personagem e para a força do espetáculo. Com força também exuberante, Matheus Macena multiplica a importância de cada pequeno movimento na construção do todo, oferecendo cuidadoso ritmo do encontro entre o público e seu personagem em torno do qual toda a narrativa se dá. Ambos merecem aplausos!

O aniversário da Aquela Cia. De Teatro
O volume altíssimo com que as canções interpretadas ao vivo pela banda formada por Felipe Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski saem das caixas de som atrapalha o espetáculo e impede a observação de alguma beleza que elas possam oferecer. A iluminação de Renato Machado aproveita o palco ocupado pela histriônica caixa de areia da instalação cênica assinada pelo diretor, aumentando suas possibilidades. A opção pelos figurinos de malha negra aponta para o aspecto contemporâneo que, como já se disse, são esforços no sentido de revelar maior complexidade.

“Caranguejo Overdrive”, que é parte do aniversário de uma célebre companhia de teatro carioca, merece voltar à cartaz várias vezes e ser conferido. Parabéns!


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Ficha técnica:

Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski
Elenco: Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques e Matheus Macena
Músicos em cena: Felipe Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski
Direção Musical: Felipe Storino
Iluminação: Renato Machado
Instalação Cênica: Marco André Nunes
Ideia Original: Maurício Chiari
Patrocínio e Produção: Quintal Produções