segunda-feira, 2 de maio de 2016

A tropa (RJ)

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Foto: divulgação

Otávio Augusto

Excelente espetáculo provoca reflexão essencial

O excelente “A tropa” terminou sua primeira temporada no último domingo, dia 1º de maio. Ele esteve em cartaz no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, mas deve voltar à programação teatral em breve. Escrito por Gustavo Pinheiro, o texto foi o vencedor da etapa carioca da 7ª edição do Concurso de Dramaturgia Seleção Brasil em Cena. Dirigida por César Augusto, a peça teve Alexandre Menezes, Edu Fernandes, Rafael Morpanini e Daniel Marano no elenco ao lado de Otávio Augusto, todos em excelentes trabalhos. Na narrativa, o encontro de quatro irmãos no leito hospitalar onde o velho pai se aproxima da morte é oportunidade para o Brasil refletir sobre sua história recente. Eis uma audiência obrigatória não só para o público interessado em um bom espetáculo teatral, mas para todos aqueles que reconhecem a importância da análise da conjuntura política do nosso país nos últimos cinquenta anos.

Dramaturgia brilhante!
“A tropa” está longe de ser uma peça sobre dramas familiares e/ou conflitos de gerações. A dramaturgia faz do encontro entre o pai convalescente e os quatro filhos de idades diferentes uma arena onde pontos de vista diversos sobre a história do nosso país se chocam. De um lado, ruge o velho Coronel (Otávio Augusto), defendendo um mundo já considerado retrógrado por boa parcela da população. Nele, deve-se respeito incondicional (e cego) aos superiores, o poder representativo também detém a liberdade para reprimir, as diferenças sociais são consideradas uma marca da humanidade, uma espécie de sinal divino que é aceito e deve ser mantido. De outro, reagem gradativamente os mais jovens: a transformação no comportamento religioso, a luta pela igualdade de raças, gêneros e de orientações sexuais, as novas constituições de família, a democratização da informação e outras estruturas hierárquicas, institucionais e de redes sociais.

No texto de Gustavo Pinheiro, os segredos vão sendo regularmente revelados: os irmãos mais velhos sabem de coisas que os mais novos desconhecem, há quem saiba detalhes do passado dos pais, há o desabafar de frustrações por parte de todos em relação aos demais. Tudo isso é metáfora para a realidade que hoje vivemos no nosso país. O grito de “Golpe!” da presidente Dilma Roussef, reagindo contra o resultado do votação da Câmara dos Deputados em favor da abertura de processo de impeachment, liga 2016 a 1964 imediatamente. Por parte da população, a tomada de partido diante dessa realidade exige que o passado e o presente se encontrem. Nesse duelo, pontos de vista diferentes se chocam e eles quase não tem a ver com idade. Tratam-se de concepções de mundo diferentes.

O melhor da dramaturgia de “A tropa” é o modo como se pesam os dois lados opostos. Há doenças físicas, psicológicas e morais por todos os lados. Há também corrupção, ingenuidade e conjunturas problemáticas. Em outra direção, em momentos diversos, a defesa de cada aspecto acontece de modo inteligente, bem construído e capaz de criar ambiente equilibrado para o embate. Ao final, o espectador será capaz de reconhecer a posição da peça, mas sobretudo terá meios de identificar as estruturas argumentativas mais sutis que levaram à conclusão. No meio do caminho, terá conhecido personagens cheios de complexidade e que bem podem ser comparados a pessoas do mundo além da narrativa ficcional. Tendo se destacado entre os 265 textos que participaram do concurso, “A tropa” é brilhante!

Muitos méritos na direção de César Augusto
A direção de César Augusto garante os méritos da dramaturgia. A opção pelo palco em galeria, em que o público fica dos dois lados do espaço cênico, vendo a peça, mas também as reações da audiência do outro lado, pontua dois aspectos essenciais na montagem. O primeiro diz respeito ao imediatismo da obra, pois tudo o que está sendo dito em cena tem relação com o mundo além da peça, fora do teatro. O segundo oferece o aspecto humano para adiante do maniqueísmo, da simplória divisão de esquerda e de direita, mocinhos e vilões. Nos rostos da plateia, pairam as concordâncias e as discordâncias com o que está sendo dito, as transformações de suas opiniões, as reações frouxas e contidas, o envolvimento. Um segundo espetáculo acontece em paralelo ali e, por esse também, a direção é meritosamente responsável.
Elenco

Além disso, assistido por Raquel André, César Augusto apresenta um ótimo trabalho no conjunto de elenco. Otávio Augusto (Coronel) se destaca, mas Alexandre Menezes (o dentista Humberto), Rafael Morpanini (o jornalista Ernesto) e Daniel Marano (o caçula João Baptista) aproveitam bastante bem suas oportunidades. Os tempos são bem usados e as inflexões refletem a alternância de energias. Pouco a pouco, eles avançam da cordialidade à guerra, passando pela ironia, pelo desabafo, pela luta e também pela amizade. Edu Fernandes (o executivo Artur), pouco expressivo, mantém-se em construção inóspita, quase nada envolvido e modestamente envolvente.

Sucesso no figurino de Ticiana Passos
Os vinte e cinco anos do período da ditadura militar no Brasil ainda se refletem em nossa sociedade (infelizmente). Na peça, os filhos do Coronel rementem aos ditadores: Humberto de Alencar Castelo Branco, Artur da Costa e Silva, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. Ou seja, o hoje e o ontem ainda não tiveram sua filiação rompida. Em “A tropa”, essa relação se vê principalmente no cenário e no figurino.

No cenário de Bia Junqueira e no figurino de Ticiana Passos, os tons de verde evoluem também nas texturas quase invariavelmente. A concepção bem amarrada dá liga para o todo, criando ambiente e panorama férteis para a encenação. Das meias brancas de Humberto ao casaco de João Baptista, todos os detalhes parecem ter sido elaborado com vistas ao sucesso do espetáculo positivamente. São positivas as colaborações da luz de Adriana Ortiz e da trilha sonora de Rodrigo Marçal e do diretor.

“A tropa”, cujo título remete ao projeto de futuro que o passado planejou, nos questiona sobre o amanhã que hoje estamos decidindo. Ou melhor, estamos? Por hora, torcendo parra que a montagem ganhe nova temporada, vale a pena ver e aplaudir.

*

FICHA TÉCNICA – A TROPA
Texto: Gustavo Pinheiro
Direção: Cesar Augusto
Assistente de direção: Raquel André
Elenco: Otávio Augusto (Pai), Alexandre Menezes (Humberto), Daniel Marano (João Batista), Edu Fernandes (Artur) e Rafael Morpanini (Ernesto)
Produção local: João Eizô
Preparação corporal: Raquel André
Preparação vocal: Breno Motta
Cenografia: Bia Junqueira
Iluminação: Adriana Ortiz
Vídeo-registro: Diogo Fujimura
Figurinos: Ticiana Passos
Trilha Sonora: Cesar Augusto e Rodrigo Marçal
Fotos: Elisa Mendes
Escolas de Teatro Participantes: CAL-Casa das Artes de Laranjeiras, UNIRIO, Nós do Morro, Universidade Candido Mendes, Escola de Teatro Martins Penna