quinta-feira, 12 de maio de 2016

O que restou do sagrado (RJ)

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Foto: divulgação


Carolina Godinho, Monique Vaillé, Fábio Guará, Elio de Oliveira, Lucas Tapioca, Diogo de Andrade Medeiros e Ana Carolina Dessandre
Uma visão simplória da humanidade

“O que restou do sagrado” é a nova montagem da peça de Mario Bortolotto. Ela fica em cartaz no Rio de Janeiro, no Castelinho do Flamengo, até hoje à noite. Escrito em 2004, o texto foi produzido pela primeira vez naquele ano pelo grupo Cemitério de Automóveis. Dessa vez, ele foi dirigido por Nirley Lacerda e produzido conjuntamente pelos grupos Fragmento e Tartufaria de Atores. Com bons trabalhos nas atuações de Elio de Oliveira, Daniel Bouzas, Carolina Godinho e principalmente de Monique Vaillé, o espetáculo tem muitos e enormes problemas que vão da dramaturgia à encenação. Ana Carolina Dessandre, Fábio Guará e Lucas Tapioca também estão no elenco. O ingresso é gratuito.

Uma visão simplória da humanidade
A narrativa se passa no interior de uma igreja para onde seis pessoas foram estranhamente trazidas ao encontro de um padre (Elio de Oliveira). Ele revela que a humanidade será destruída se os sete não se arrependerem de seus pecados. A situação é ponto de partida para uma série de reflexões sobre a relação entre deus e os homens: os pecados, a fé, as práticas religiosas, etc. Aí começa o maior problema desse texto de Mario Bortolotto.

“O que restou do sagrado” é um texto menor desse grande dramaturgo. Diferente da complexidade tantas vezes elogiada em suas outras obras, nessa as questões levantadas revelam um ponto de vista muito raso. Consta que o mote surgiu da tese “O problema do mal”, de Santo Agostinho (354-430 a.C.). Se sim, foi muito pouco desenvolvida. Nela, o bispo de Hipona reagia ao maniqueísmo, vertente filosófica não-cristã segundo a qual existia um deus para o bem e outro para o mal. Em um resumo de sua resposta, aparece que só há um único Deus e que o mal nada mais é que a ausência do bem, ou seja, não existe em substância. Todo esse desdobramento filosófico ecoa, entre outros campos, no comportamento religioso: do conceito de livre arbítrio ao tema da salvação, passando pelo pecado original à existência do homem na Terra. Nenhum desses aspectos é contemplado em profundidade nesse texto de Bortolotto.

Ao longo da peça, em quase todas as falas, há uma infantil tentativa de humanização de deus. Em outras palavras, todos os personagens tentam compreender o que chamam de ações divinas a partir do comportamento humano. Assim, afastando-se enormemente de Santo Agostinho sem tampouco levar em consideração qualquer das reflexões elaboradas nos mais de quinze séculos que vieram depois, o texto submerge em sua superficialidade.

A divulgação avança no pior ao comparar essa dramaturgia com “Entre quatro paredes”, escrito em 1944, pelo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Além de vários outros aspectos, em Bortolotto, a existência de deus é rejeitada enquanto, em Sartre, ela é negada assim como a do inferno. Ou seja, se, em Santo Agostinho, Deus acredita no homem a ponto de permitir que ele alcance a sua salvação através de sua conversão, e se, no dramaturgo francês, o homem é seu próprio deus e seu próprio demônio, em “O que restou do sagrado”, paira uma humanidade nem boa, nem má, mas meramente simplória.

Inúmeros problemas na encenação
A direção de Nirley Lacerda não só deixa de resolver os problemas do texto como também traz novos entraves para a encenação. O espetáculo é apresentado em uma sala muito pequena para um público de vinte pessoas espremidas junto aos atores. Mesmo assim, todo o elenco tem gestos largos, expressões marcadíssimas, vozes em volume alto e movimentação brusca. Falta equilíbrio, nuance, detalhe assim como ironia, delicadeza, ardilosidade. Completamente diferente de todo o ideário estético de Mario Bortolotto, a saber com os dois pés muito firmes no realismo (principalmente aquele de verve naturalista), a montagem faz do excesso de teatralidade o seu principal defeito.

Empenhadíssimos negativamente na caricatura, Ana Carolina Dessandre (Cibele, a escritora), Fábio Guará (Roby, o mauricinho) e Lucas Tapioca (Charles, o pedófilo) têm atuações patéticas. Elio de Oliveira (o padre), Daniel Bouzas (Val, o homofóbico) e Carolina Godinho (Secretária, a necrófila) têm alguns bons momentos sobretudo quando as oportunidades de maior força protegem seus trabalhos contra os níveis mais delicados. A única realmente boa participação é a de Monique Vaillé (Lilís, a atriz), que, confiando na expressividade de seu figurino, oferece uma interpretação mais comedida e, portanto, meritosamente equilibrada.

Os figurinos de Patrícia Muniz redundam o texto, reduzindo sua importância e pesando a narrativa cênica. Nada é pior do que a batina do Padre. O desenho de luz de Paulo César de Medeiros não faz da criatividade uma qualidade, mantendo a luz fria monotonamente acesa durante toda a encenação. As contribuições de Diogo de Andrade Medeiros ao cenário são tão óbvias quanto pobres.

Concurso de pior pecado
Logo depois da peça ter começado, o espectador percebe que as reflexões sobre o comportamento religioso deram lugar para um concurso de qual dos personagens cometeu pior pecado. Esse texto de Mario Bortolotto, bem como essa encenação dele, sobrou em sua vastíssima obra infelizmente.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Mário Bortolotto
Direção: Nirley Lacerda
Elenco: Ana Carolina Dessandre, Carolina Godinho, Daniel Bouzas, Fábio Guará, Elio de Oliveira, Lucas Tapioca e Monique Vaillé
Direção de Movimento: Priscila Vidca
Iluminação: Paulo César Medeiros
Figurino: Patrícia Muniz
Cenário: Diogo de Andrade Medeiros
Trilha Sonora: Nirley Lacerda
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Direção de Produção: Monique Vaillé
Design: Elio de Oliveira
Fotos: Roberto Rossi
Realização: Grupo Fragmento e Tartufaria de Atores

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