quarta-feira, 15 de junho de 2016

Casa de bonecas (RJ)

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Foto: divulgação


Regina Sampaio, Roberto Bomtempo, Miriam Freeland e Anna Sant'Anna

Ponto alto da programação teatral carioca!

O excelente “Casa de bonecas”, do argentino Daniel Veronese, parte da elogiada versão do célebre original escrito em 1879 pelo norueguês Henrik Ibsen. Dirigida por Symone Strobel e por Roberto Bomtempo, a montagem tem ele no elenco ao lado de sua esposa Miriam Freeland nos papeis do casal Jorge e Nora. Ana Sant’Anna, Leandro Baumgratz e Regina Sampaio interpretam os demais personagens, todos em excelentes trabalhos. Na história, um empréstimo feito pela esposa junto a um agiota pode comprometer a imagem pública do marido, esse recém promovido ao cargo de diretor de um banco. O segredo é motivo de revelação de várias diferenças domésticas que podem expor a realidade do casamento aparentemente perfeito. A produção fez enorme sucesso em sua primeira temporada que acabou no último domingo, dia 12 de junho, no Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Que volte para outras em breve!

A Nora de Ibsen e de Veronese
Quando “Casa de bonecas” ganhou as primeiras encenações nas principais capitais da Europa, Henrik Ibsen (1828-1906) já era um autor conhecido como um expoente do teatro realista. O movimento reagia ao romantismo, estando em consonância com as questões sociais surgidas a partir da industrialização das grandes cidades e da decadência da vida no campo. Na pauta social da segunda metade do século XIX, fervilhava a luta das mulheres pelo direito à educação e ao voto, por melhores condições de trabalho e por liberdade em relação ao seus pais e maridos. Nesse contexto que efervescência, a história de uma mulher que se reconhece manipulada e que se vê tolhida da própria identidade foi um furor.

“El desarrollo de la civilización venidera”, título original da versão de Daniel Veronese para “Casa de bonecas”, retira o drama de Nora do fim do século XIX e o traz para o presente, mantendo a mesma estrutura. O mais interessante do feito são as poucas alterações do dramaturgo argentino no trabalho do norueguês, pois assim fica mais fácil avaliar o tamanho das diferenças históricas de nossa sociedade e daquela. A Nora de Ibsen reclamava o fato de ser, antes de esposa e mulher, um ser humano, mas, entre esses dois polos, ela era uma bandeira de luta social. A Nora de Veronese, antes de ser esposa e mulher, é ser humano, mas, em nosso tempo, isso já é uma batalha válida por si só. Nesse sentido, nessa versão, não são apenas as mulheres as convidadas a se identificar com Nora, mas qualquer pessoa cujos olhos se abrem para os jogos de opressão nos quais se veja aprisionada.

O bancário Jorge (Roberto Bomtempo) é marido de Nora (Miriam Freeland) há oito anos. Quando a peça começa, o casal tem dois filhos. O início da narrativa se dá quando o marido é promovido a um cargo de chefia no banco, situação que vem a público na véspera das celebrações natalinas. As amigas Cristina (Ana Sant’Anna) e Dra. Rank (Regina Sampaio) comemoram o acontecimento junto ao casal, embora se envolvam de modo diferente com o fato: uma delas está precisando de emprego e cogita ser ajudada por Jorge a conseguir uma colocação. Nora, que ensaia passos de dança para apresentar em um evento social para o qual ela e seu marido foram convidados, exalta a sorte de sua vida matrimonial. É nesse contexto que a história ganha novos rumos.

No passado, Nora mentiu para seu marido sobre a origem de uma larga quantia em dinheiro usada para o pagamento de uma doença da qual ele sofreu. Na verdade, o recurso não veio de um empréstimo obtido junto a seu pai, mas a Krostag (Leandro Baungratz), um agiota que agora a importuna apesar da parcelas estarem sendo pagas pontualmente e com juros (altos). Sem independência financeira, assim, ela vive uma vida dupla: acusada de perdulária pelo marido, ela secretamente poupa o gasto que o salvou da morte. Ocorre que Jorge, colega de Krostag no banco, pensa em demiti-lo tão logo assuma o novo posto em um ato moralizante contra qualquer atividade relacionada à agiotagem. Como um Édipo que quer descobrir o responsável pela maldição descida a Tebas, Jorge desconhece que está nele toda a origem do mal. Diferente de Ésquilo, Nora não se mata como Jocasta. Ao contrário, percebendo ter estado limada da vida até então, vislumbra a chance de renascer. No final da história, os grilhões que prendem Nora ao lar são avaliados, o que rendeu, nos últimos 137 anos, inúmeras reflexões. Dentre elas, vale destacar a peça “O que aconteceu com Nora depois de ter deixado o marido ou Os pilares da sociedade”, escrito em 1979, pela austríaca Elfride Jelinek.

Miriam Freeland: uma das melhores interpretações da temporada
Essa versão de “Casa de bonecas” tem direção brilhante de Roberto Bomtempo e de Symone Strobel, assistidos por Elder Gattely, cujo alto nível se vê na qualidade do conjunto de interpretações. As cenas iniciais acontecem em meio a uma euforia quase irritante. Os atores falam ao mesmo tempo, há ensaios de passos de dança, bebidas, choros, gritos, gargalhadas e reclamações. O realismo, isto é, o esforço da encenação em parecer com algo do lado de cá da narrativa, quase coloca o público na situação de voyeur de uma situação que infelizmente lhe espelha. É tão bom quanto constrangedor. Aos poucos, a aparente banalidade vai dando lugar a um quadro aterrador: uma chuva rala se torna vendaval.

Do papel mais gracioso em Dra. Rank ao mais enigmático Krostag, Regina Sampaio e Leandro Baumgratz defendem bem suas posições com equilíbrio, delicadeza e sensibilidade. Anna Sant’Anna, com hábeis movimentos sutis, participa da narrativa, aproveitando cada possibilidade em uma postura potente que enche o todo de qualidade. Em ótimo trabalho, Roberto Bomtempo guarda as maiores nuances de seu Jorge para o final, depois de ter feito seu personagem alternar doçura e violência com cada vez mais frequência.

Miriam Freeland apresenta uma das melhores interpretações na grade de programação carioca nessa temporada. Em sua performance, veem-se destacável entrega, excelentes usos do corpo e da voz, intenções claras e vibrante articulação de carisma. Com habilidade, ela conduz toda a narrativa, levando sua fruição para um posicionamento reflexivo, mas não menos emotivo. É excelente!

Sem destaque, o cenário inóspito de “Casa de bonecas”, assinado por Franco Battista e por Ariel Vaccaro, não compromete embora perca a oportunidade de contribuir de modo mais relevante. Quanto ao figurino, diz-se o mesmo. A luz de Gonzalo Martínez positivamente pouco participa, elevando o empenho da produção em atualizar o realismo.

Eis aqui um dos pontos altos da programação teatral carioca nessa temporada!

*

Ficha técnica:
Texto: Henrik Ibsen
Versão original: Daniel Veronese
Direção: Roberto Bomtempo e Symone Strobel
Elenco: Miriam Freeland, Roberto Bomtempo, Anna Sant’Ana, Regina Sampaio, Leandro Baumgratz
Iluminação: Gonzalo Martínez
Cenário: Franco Battista e Ariel Vaccaro
Direção de Produção: Miriam Freeland e Valéria Alves
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias

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