sexta-feira, 29 de julho de 2016

Lady Christiny (RJ)

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Foto: divulgação


Alexandre Lino


Monólogo controverso


“Lady Christiny” é o controverso monólogo escrito por Daniel Porto, dirigido por Maria Maya e interpretado por Alexandre Lino que o idealizou. A peça é baseada na vida real da personagem homônima, uma transexual cujo nome de batismo era Celso Marinaldo da Silva (1956-2006). A história foi antes contada no curta-documentário de mesmo nome dirigido por Lino em 2005. Em cena, a vida de Lady Christiny é narrada em primeira pessoa, com acréscimos na dramaturgia e participação de vídeos, revelando um panorama muito complexo. Ele negativamente perde melhores oportunidades de contribuir para uma sociedade menos intolerante. O espetáculo fica em cartaz no Teatro II do congelante SESC Tijuca na zona norte do Rio de Janeiro até o próximo domingo, dia 31 de julho.

Peça depõe contra quem diz elogiar
Antes de mais nada, vale ressaltar que a presente análise versa sobre o monólogo “Lady Christiny” e não sobre o personagem que o inspirou. Nesse sentido, a avaliação a seguir parte de um objeto estético e que não tem intenção de inferir qualquer julgamento a respeito nem de Lady Christiny, nem de seus familiares e suas opiniões pessoais.

O modo como a dramaturgia de “Lady Christiny” se estrutura é bastante controverso. De um lado, na fala em primeira pessoa, há a narrativa do “eu” por meio da qual a personagem se constrói diante do espectador. De outro, há a inevitável apresentação do “tu” e do “ele”, isto é, o para quem o personagem fala e a partir de qual lugar no mundo essa posição se dá. Nesse monólogo, a articulação desses três níveis gera um todo que desfavorece demais a personagem que aparentemente é homenageada. Em outras palavras, a peça depõe contra quem, a princípio, diz elogiar.

Sobre o primeiro nível, aquele em que se vê a narrativa da vida do personagem por ele próprio, sabe-se que Celso conheceu Célia quando ambos eram adolescentes e que, apaixonados, fugiram de casa para se casar. Dessa união, nasceram dois filhos – Kathya Alessandra e seu irmão – que vieram ao mundo antes da maioridade do pai. Aos vinte três anos, tendo gravado quatro discos de músicas românticas e vencido vários concursos de calouros inclusive na televisão, Celso se apaixonou por Claudio, que era seu fã e frequentava sua casa. Percebendo o sentimento que nascia entre seu marido e o amigo dele, Célia convidou o segundo para morar com sua família, pedindo apenas a Celso que não se divorciasse dela. Segundo Lady Christiny, essa foi a primeira vez que sentiu atração sexual por outro homem.

O relacionamento entre Celso e Claudio entrou em crise quando Célia revelou ao marido que o namorado dele a cortejava também. Para ela, isso era sinal de que o único meio dos dois permanecerem juntos era Celso adquirir uma identidade feminina que pudesse manter o desejo sexual de Claudio que, para ela, era heterossexual. A partir disso, Celso começou uma jornada de redesignação de gênero, transformando-se, com a ajuda de hormônios e de silicone, em Christiny. O relacionamento com Claudio durou quartorze anos e terminou quando se descobriu que esse cortejava Kathya Alessandra. Oficialmente, o casamento entre Celso/Christiny e Célia nunca se desfez.

Em segundo nível, o monólogo “Lady Christiny” revela ainda a opinião da personagem-título sobre si mesma e o mundo no qual essa avaliação acontece: o “tu” e o “ele”. Ao longo de todo o texto, é nítido que, para a personagem e também para sua filha, cuja imagem aparece por meio da reprodução de um trecho do documentário fílmico, o mundo se divide entre homens e mulheres e em heterossexuais e homossexuais. Em nenhum lugar do texto, a parece a palavra transexual, bem como seu conceito como também não o de qualquer outro. E essa abordagem anuncia uma visão de sociedade que hoje é muito limitada.

Ao longo da peça, a personagem Lady Christiny faz inúmeras críticas ao comportamento que ela julga ser dos homossexuais: a promiscuidade, a afetação, a falta de valores. Segundo ela, citando suas palavras, a sociedade está certa em ter preconceito contra os gays dado o modo como eles se apresentam ao mundo. “Quando eu vejo dois homens se beijando na rua, eu tenho vontade de tacar uma lâmpada na cabeça deles!” – diz, se referindo à terrível agressão que, na vida real, um casal gay sofreu na Avenida Paulista, em 2010. Afirmando-se como uma “travesti comportada”, ela aponta solenemente para o outro de cuja identidade orgulhosamente se separa.

Esse contexto se ratifica em outros lugares da dramaturgia. A personagem Kathya se refere ao pai como “ele” e ensina seu filho a chamar o avô de Vô Chris. Lady Christiny, aparecendo no vídeo com o corpo fisicamente identificável com o de uma mulher, chama a si própria de “homem”. E afirma que voltaria atrás em sua transformação em mulher se pudesse. Ao final, afirma se orgulhar de conhecer as mulheres melhor que todo mundo. Desse modo e por tudo isso, o discurso oral da peça, na sua oposição entre o “eu” e os “outros”, os homens e as mulheres, os homossexuais e os heterossexuais, vai a falência quando o discurso imagético é muito mais complexo. Em outras palavras, se, de um lado, o monólogo vê o mundo dividido em dois, de outro, tem-se uma realidade em que várias partes se encontram e se misturam.

Em síntese, o espetáculo “Lady Christiny” acaba por narrar a história de uma personagem aprisionada em padrões de identidade de gênero que não atendiam à complexidade de seus impulsos naturais. Suas ideias de família e suas opiniões sobre bom comportamento, fazendo pleno sentido no âmbito da reflexão racional, esbarravam na incapacidade (ou impossibilidade) de incluir posturas não previamente determinadas e que fossem mais de acordo com sua própria história. Quando Christiny e Kathya revelam que, se estivessem no lugar de Célia, não tolerariam a abertura do relacionamento para incluir Claudio e que, fosse Célia quem se anunciasse como lésbica, não aceitariam sua “opção”, seus preconceitos contra si próprias e suas histórias oferecem uma visão mais digna de pena do que de homenagem na contemporaneidade.

Espetáculo perde oportunidades preciosas
Vestindo um figurino masculino com, na maquiagem, leves realces mais femininos, Alexandre Lino interpreta o monólogo sentado atrás de um microfone. Gestos sutis mais afetados e alguns agudos na entonação vocal dão pistas de um personagem não facilmente identificável com homem heterossexual. Assim, a versão teatral de Lady Christiny, em oposição ao modo como a personagem aparece no vídeo-documentário, antevê por justaposição (e não de maneira mais articulada) o modo como ela se transformou.

A qualidade da interpretação de Lino, porém, esbarra na concepção do espetáculo, que é dele também, essa por sua vez aparentemente não melhorada pela dramaturgia de Daniel Porto e pela direção de Maria Maya. O modo controverso com que “Lady Christiny” mistura homenagem com crítica deixa unicamente nas mãos do espectador a responsabilidade pela compreensão da peça. Isso faz com que, no público, aconteça um outro espetáculo. Toda vez que uma parcela da plateia ri daquilo que a outra considera um horror fica nítida a conjuntura social problemática em que vivemos. Considerados os inúmeros casos de machismo, homofobia e de transfobia que o Brasil vergonhosamente apresenta, a simples pauta dessa problemática, sem posição mais clara contra ela, deixa a desejar.

“Lady Christiny”, com bela iluminação de Renato Machado, perde a chance essencial de se posicionar de maneira mais clara, contributiva e necessária para um mundo com menos intolerância.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Daniel Porto
Direção: Maria Maya
Elenco: Alexandre Lino
Iluminação: Renato Machado
Direção de Arte: Tatiana Brescia
Programação Visual: Guilherme Lopes Moura
Fotografia: Janderson Pires
Webdesign: Mariana Martins
Videografismo e Assessoria geral: Renato Krueger
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias
Produção Executiva: Equipe Cineteatro Produções
Preparação Vocal: Gina Martins
Realização: SESC
Idealização e Direção de Produção: Alexandre Lino
Um projeto da Documental Cia.

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