domingo, 28 de agosto de 2016

Decadência (RJ)

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Foto: divulgação


Aline Fanju e Erom Cordeiro

Com ótimo texto e excelentes atuações, Victor Garcia Peralta remonta “Decadência”

“Decadência”, do inglês Steven Berkoff, infelizmente termina sua primeira temporada hoje no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana. A montagem está excelente! Aline Fanju apresenta um ótimo trabalho de atuação, mas Erom Cordeiro tem aqui, talvez, o melhor trabalho de sua já longa carreira como ator. Os dois surgem em cena dirigidos por Victor Garcia Peralta que, desde “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” não assinava um espetáculo tão magnífico. Na peça, questões relativas a traição conjugal são motivo para, através de dois casais de personagens, vir à tona um retrato de mundo em que valores sociais entram em crise. Vale muito a pena correr parar assistir!

Excelente texto de Steven Berkof
O texto foi escrito por Steven Berkoff e produzido por ele que atuou na própria peça em 1981. A Inglaterra estava no início do governo da primeira ministra Margareth Thatcher (1925-2013), célebre pela quase invenção do neoliberalismo. Nesse conceito de administração, as privatizações e o arrocho fiscal, na constituição de um Estado com participação mínima, foram as medidas através das quais o capitalismo venceu de vez o socialismo. O resultado foram duas décadas de expansão econômica das grandes empresas mundiais e a substituição de um universo polarizado entre capitalismo e socialismo por outro entre poucos ricos e muitos pobres. “Decadência”, num tom visionário de denúncia, não partia dos movimentos sociais como era voga, mas estava, já naquela época, preocupado em pautar o consumismo exacerbado como capaz de levar a Europa, após “o fim da festa”, à bancarrota. Thacher saiu do poder em 1990, as ditaduras latinas também no mesmo período. Tanto a esquerda como a direita se voltaram para o centro e o ocidente acabou vendo o crescimento da China. Verdadeiramente, apesar de exceções pontuais como a Grécia e a Argentina, a falência ainda não aconteceu, mas o medo mantém o texto atual trinta e cinco anos depois, o que revela seu preciosismo.

De um lado, Steve e Helen são um casal de amantes que se esbanjam entre drogas, álcool, sexo livre, orgias gastronômicas e artigos de grife. De outro, Sybil, esposa de Steve, e o investigador Les se dedicam a encontrar meios de encurralar os dois primeiros. Na elogiada estrutura dramatúrgica (o texto original é cheio de rimas, palavras rebuscadas e de composições frasais complicadas), quanto mais os quatro personagens se voltam uns para os outros, mais eles se opõem ao mundo que gira em seu redor. (Thatcher, assim como Fernando Henrique Cardoso e agora Michel Temer, foi uma resposta conservadora às crises sociais - assim como Lula, Obama e Chávez já foram respostas humanistas às crises capitais.) Em outras palavras, o discurso de “Decadência”, cena após cena, ao afinar a posição de Steve, Helen, Sybil e de Les, afina também a oposição de quem lhos assiste. O grito deles pelo direito a um lugar privilegiado em uma sociedade “higienizada” enfurece sobretudo quem tem um pingo de consciência política no público. Em termos de narrativa, esse feito, além de destacar uma metodologia de extrema complexidade capaz de nutrir valorosa reflexão, ativa a atenção, mantendo fluido o diálogo entre palco e plateia.

“Decadência”, que virou filme em 1994, teve uma versão brasileira muito elogiada na época, dirigida pelo mesmo Victor Garcia Peralta, no fim dos anos 90, com Beth Goulart e com Guilherme Leme Garcia no elenco. Pode ser interessante comparar a sociedade que viu aquela montagem e essa que agora tem a oportunidade de ver. Em 1999, Fernando Henrique Cardoso estava no primeiro ano de seu segundo mandato. A estabilidade econômica conseguia disfarçar, naquele período, as perdas sociais que só foram chamar a atenção pública do Brasil através das edições do Fórum Social Mundial a partir de 2001. Hoje, dezessete anos depois, a complexidade da situação política do país, se talvez impede que determinada posição seja efetivamente tomada, expõe a necessidade de uma constante reflexão sobre o tema. Ou seja, essa montagem de “Decadência” não só é obra a se ver, mas é obra que nos vê e pode promover, se lhe ajudarmos, a nós nos vermos também. Tudo isso é excelente!

Vibrante direção de Victor Garcia Peralta e excelentes atuações
A direção de Victor Garcia Peralta, nessa montagem, é um dos seus melhores trabalhos. Tudo acontece através dos dois atores, de um tablado acolchoado e de um vibrante desenho de luz. Não há qualquer objeto em cena, nem trocas de figurino, tampouco entradas e saídas. O palco, em mãos habilidosas, mostra-se lugar artisticamente potente e rico. Ao longo da encenação, é como se diversos pequenos espetáculos fossem acontecendo, o que revela pequenas unidades de ação que, se aparentemente independentes, atribuem um sentido profundo para o todo. A direção de movimento é de Márcia Rubim.

“Decadência” começa com cenas cheias de partituras corporais: expressões muito aparentes, movimentos cronometrados, entonações vocais variantes. Tudo parece vazio porque dado demais à forma e portanto sem exploração perceptível do conteúdo. Mas então chega-se a um novo panorama. Nele se percebe que essa concepção inicial servia a uma crítica, através do teatro farsesco, aos hábitos burgueses da sociedade que não quer ser confundida com a trabalhadora embora também não seja aristocrática.

O ritmo evolui. Percebe-se a exploração dos pecados capitais, sente-se o modo diferente como Erom Cordeiro e Aline Fanju passam a reagir um ao outro. Menos gestos, expressões mais contidas, entonações mais invariáveis surgem em um novo meio de dar a ver o discurso. O ator, talvez em seu melhor trabalho, apresenta exuberante número de possibilidades expressivas diversas. A atriz, com força, ganha o público pouco a pouco até vencer o desafio de se equilibrar na contracena. Os dois oferecem-se íntegros à conquista dos merecidos aplausos finais, que vêm.

O cenário de Dina Salem e o figurino de Carol Lobato colaboram pontualmente, mas a luz de Felipe Lourenço tem mais espaço para aparecer e consequentemente se desafiar. O quadro, nutrindo-se a partir de jogo sutil e evolutivo, varia em franca participação nos méritos do ritmo. Tudo, em valorização do texto e das interpretações, destaca um teatro que é lindo pelo homem e sua plástica natural.

“Decadência”, um dos espetáculos mais vibrantes do ano no Rio de Janeiro, precisará voltar em cartaz em breve. Tomara!

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Steven Berkoff
Tradução: Maria Adelaide Amaral e Leo Gilson Ribeiro
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Erom Cordeiro e Aline Fanju
Cenário: Dina Salem
Figurinos: Carol Lobato
Direção de Movimento: Márcia Rubim
Luz: Felipe Lourenço
Direção de Produção: Carlos Grun
Idealização: Victor Garcia Peralta e Erom Cordeiro
Realização : Bem Legal Produções e SESC Rio
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Um comentário:

  1. ASSISTI DUAS VEZES, É SIMPLESMENTE SENSACIONAL!EROM E ALINE SÃO MONSTROS SAGRADOS DIANTE DA PLATÉIA!

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