sábado, 3 de setembro de 2016

Cidade correria (RJ)

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Foto: divulgação


Igor da Silva, Marcelo Magano,Vanessa Rocha,Hugo Bernardo, Daniela Joyce, Lívia Laso,
Karla Suarez e Thiago Rosa
Um espetáculo arrebatador!

Uma das produções teatrais mais elogiadas do primeiro semestre carioca, o excelente “Cidade correria” fez, no último final de semana, duas apresentações no Galpão Gamboa. A peça é dirigida com destacável brilhantismo por Adriana Schneider e por Lucas Oradvschi e tem, no elenco, os bons trabalhos de Daniela Joyce, Karla Suarez, Patrick Sonata e de Thiago Rosa ao lado dos ótimos Igor da Silva, Hugo Bernardo, Jardila Baptista, Lívia Laso e Vanessa Rocha e do excelente Marcelo Magano. Juntos eles compõem o Coletivo Bonobando, que assina a montagem. No espetáculo, uma visão de mundo alternativa à geralmente eleita ganha pauta, pouco a pouco, pelos méritos estéticos. Sobermamente capaz de incluir seu olhar, ele abre espaço para a reflexão e faz dela sua linda bandeira de luta. Eis um trabalho magnífico que merece vida longa e muita atenção!

Magnífico trabalho de direção de Adriana Schneider e de Lucas Oradovschi
“Cidade correria” tem dois méritos enormes: um ligado à estética e outro relativo à sua produção. Quanto ao primeiro, deve-se dizer que a direção de Adriana Schneider e de Lucas Oradovschi é um dos trabalhos mais importantes do ano na programação teatral carioca. Dispondo de poucos elementos e assinando a manipulação deles por um conjunto de intérpretes inexperientes no fazer teatral profissional, a dupla oferece quadros cada vez mais belos ao longo da encenação. Toda cena, além de se articular com a anterior e com a próxima, surge pelo aprofundar de si própria em um jogo que não só se amplia, mas também fica mais complexo.

Em outras palavras, a cena dois vence o desafio de se opor à cena um, pois são quadros diferentes e com personagens e conflitos próprios. Mas, também, ela acontece no palco por meio de inúmeros convites à própria ressignificação, tirando o espectador parcialmente da zona de conforto e exigindo, assim, que ele se esforce em reconhecer o que está vendo enquanto vê. Durante a sessão, a plateia percebe que cada momento é uma estrutura que é parte de um todo maior, mas que é também, em si, um todo cheio de pequenas partes. Esse processo tão difícil e tão valoroso, cuja direção Schneider e Oradovschi assinam, permite pensar que o conjunto de valores da periferia é regido por regras alternativas às que regem o conjunto da zona central. E que centro e periferia nada mais são, por isso, que pontos de vista.

O segundo grande mérito da produção é o modo como seu resultado estético dialoga com as informações acerca de sua viabilização. “Cidade correria” estreou no fim de outubro de 2015, na Arena Carioca Dicró (gerida pelo Observatório das Favelas), na Penha, onde foi gestado durante dois anos de residência artística realizada lá pelo Grupo Teatro da Laje, da Vila Cruzeiro. O trabalho desse grupo, que tem vibrante atuação em diversas comunidades do município há quatorze anos, e a colaboração de diversos artistas e pensadores ofereceram terreno artisticamente fértil para o florescer do Coletivo Bonobando – Bando de Artistas Anônimos, que assina a montagem teatral que aqui se analisa. Ana Achcar, Cátia Costa, Fabianna de Mello e Sousa, Luiz André Alvim, Mariana Mordente, Ricardo Cotrim, Thiago Florencio e Veríssimo Júnior são alguns nomes fortes dentre os participantes do processo.

O espetáculo fez apresentações em vários lugares da cidade incluindo, entre junho e julho, uma célebre temporada no Teatro Sérgio Porto, na zona sul. Ele não surge isolado, mas sempre, desde sua estreia, se apresentou envolvido a mostras e a discussões relativas à inclusão social. Esse diálogo é proposto não por uma conversa em que a periferia se torna centro, mas pela criação de um contexto estético e reflexivo em que centro e periferia são apenas paradigmas. Trata-se, pois, de uma produção que não só investe e colhe possibilidades artísticas em diversas zonas da cidade, mas está plenamente disposta a pautar uma sociedade que pode ser transformada a partir de um debate aberto sobre seus territórios culturais. Em tudo, um projeto valoroso!

Excelente conjunto de atuações
O conjunto das atuações é bastante positivo. Os dez atores parecem entrosados, encorajados e felizes em cena, apresentando de modo forte mas ao mesmo tempo delicado seu olhar sobre o mundo. Não se trata de um grito, mas uma palavra que é dita de maneira clara. Não é uma imposição, mas uma sugestão. Não se revelam carências e dificuldades, mas outros tipos de riquezas e de possibilidades. Tudo isso faz com que, pelo sucesso das interpretações, o espetáculo fique envolvente e apaixonante.

Igor da Silva abre a peça, rasgando o silêncio de modo valoroso sobretudo pelas dificuldades de uma cena de introdução. Daniela Joyce encerra, vencendo desafio similar ao propor um ápice que justifique o todo. No centro, Hugo Bernardo, apresentando um passinho, e Vanessa Rocha, em uma belíssima cena de cunho mais lúdico mas não menos cortante, garantem a força de todo o trabalho. Lívia Laso e Jardila Baptista, mas principalmente Marcelo Magano apresentam excelente trabalho corporal com gestos limpos, intenções claras, movimentação equilibrada. Todo o conjunto, cuja direção de movimento é assinada por Cátia Costa e por Mariana Mordente, merece parabéns.

A direção de arte de Fabiana Mimura, a iluminação de Nina Balbi e a direção musical e trilha sonora de Ricardo Cotrim também têm destaque pelo modo como se articulam com o trabalho dos atores e com a dramaturgia. A explosão de registros no guarda-roupa, o jeito rico com que poucos elementos integram o palco e a plateia, a alternância na maneira como a luz organiza o que deve ser visto e o conjunto dos sons e dos ritmos que participam da proposta são detalhes intimamente ligados entre si nessa peça. O exercício que aqui tão bem explora essa parafernália semântica surge como metáfora, mas também como cláusulas de um acordo: é conteúdo, mas é também o pedido para que não se deixe a reflexão para depois.

“Cidade correria”, inspirado em imagens, filmes, livros, situações e em histórias do cotidiano da periferia carioca, parece ver o mundo como uma esteira cheia de personalidades, colaborações, questões adversas. É como se não fosse possível dizer, a partir do espetáculo, que o mundo é desorganizado, porque, para isso, precisar-se-ia considerar organização um paradigma. Por outro lado, também não é absurdo só porque nem sempre se é possível encontrar lógica, causa e efeito. É talvez uma complexa correria em constante transformação, essa que pode ser percebida por quem tiver olhos atentos, coração aberto e mente disposta. Aplausos efusivos!

*

Ficha técnica:

Com: Daniela Joyce, Hugo Bernardo, Igor da Silva, Jardila Baptista, Karla Suarez, Livia Laso, Marcelo Magano, Patrick Sonata, Thiago Rosa, Vanessa Rocha
Dramaturgia: Criação Coletiva
Direção: Adriana Schneider e Lucas Oradovschi
Metodologia de dramaturgia: Adriana Schneider
Direção de movimento: Cátia Costa e Mariana Mordente
Direção musical e trilha original: Ricardo Cotrim
Funk "Xô sai pra lá": Marcelo Magano e Ricardo Cotrim
Direção de arte: Fabiana Mimura
Iluminação: Nina Balbi
Preparação corporal: Cátia Costa
Treinamento de máscaras balinesas: Lucas Oradovschi
Preparação vocal: Verônica Machado
Assistência de arte: Filipe Duarte
Direção de produção: Karla Suarez
Produção executiva: Marcelo de Brito
Assistência de produção: Lívia Laso e Thiago Rosa
Comunicação: Karla Suarez e Marcelo Magano
Assessoria de imprensa: Gabriel Murga
Artes: Washigton Santana
Cobertura Fotográfica: Maira Barillo, Davi Andres
Formação de plateia: Thamyra Thâmara de Araújo


Textos da pesquisa: “O bebê de tarlatana rosa”, de João do Rio; “A última chuva do prisioneiro”, de Mia Couto; “O duelo entre a criança que diz sim e a cidade que diz não”, de Thiago Rosa; “Banzeiro”, de Ricardo Cotrim; “Cidade Correria 1”, de Thiago Florencio; “Cidade Correria 2”, de Daniel Guimarães.

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