quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Garota de Ipanema, o amor é bossa (RJ)

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Foto: divulgação


Cládio Galvan (acima), Letícia Persiles e Thiago Fragoso

Aventura Entretenimento estreia outro espetáculo ruim

É difícil entender o que se passa com a Aventura Entretenimento. “Garota de Ipanema, o amor é bossa”, seu mais novo péssimo espetáculo, repete os mesmos problemas estruturais da maior parte de suas últimas produções. O célebre “intercâmbio entre as artes”, que sua divulgação preconiza, na verdade, parece ser o subjugo de profissionais gabaritados do teatro musical a pessoas sem experiência na área. Isso não é um problema quando quem começa aprende com os primeiros, mas, de um modo até cafona, aqui se vê o contrário. Nessa produção, é fácil identificar o esforço do diretor Gustavo Gasparani diante do texto capenga da famosa novelista Thelma Guedes, estreante no teatro. Vê-se também o importante Cláudio Galvan brilhar na defesa de personagem minúsculo enquanto se testemunha a celebridade Thiago Fragoso desafinar em uma atuação sem sal no papel de protagonista. O custo zero (?) de cenários e de figurinos - na contrapartida do valor do ingresso e do investimento da Bradesco Seguros - enche a coreografia, a luz e a direção musical de responsabilidades que elas não podem vencer. Vale, na programação em cartaz até dia 27 de novembro, a visita ao belíssimo Teatro Riachuelo. Sua inauguração recente, aliás esse um critério essencial dessa abordagem, acontece no seio de uma cidade onde já não se aceita qualquer coisa. Então, o que há?

Os problemas da dramaturgia de Thelma Guedes
Os muitos defeitos da dramaturgia dessa peça podem ser analisados a partir de dois grupos: aqueles da ordem de sua estrutura interna e aqueles que dizem respeito ao seu envolvimento com a produção. Quanto ao primeiro, de um lado, está a pobreza dos personagens, esses motivados por problemas facilmente solucionados e que, por isso, não garantem à narrativa mínima força suficiente. De outro, está o esvaziamento do conflito geral diante ou de desafios cujo vencimento não cabe aos personagens ou da prolixidade das cenas em sua tendência excessivamente cronológica. Quanto ao segundo, paira a reflexão do lugar da bossa nova e da canção “Garota de Ipanema”, que dá título à montagem, no contexto narrativo.

Para avaliar o modo como os personagens estão construídos, é preciso apresentar a história. Ela começa quando o arquiteto Zeca (Thiago Fragoso), tocando violão em um bar, é ouvido por Vinícius de Moraes (Will Anderson) e por seus amigos. Eles notam que o músico, a quem chamam para conversar, tem talento, mas que pode melhorar quando enfim for atingido pelo amor. Por causa dessa amizade, Zeca conhece a jovem Dindi (Letícia Persiles). Sem ser esperada, ela chega, um dia no meio da tarde, sonhando com a possibilidade de que o célebre compositor a ouça cantar, mas topa ensaiar com o desconhecido enquanto o famoso não vem. E vai embora antes de realizar seu intento inicial.

A partir daí, a história avança pelo interior desses dois protagonistas: Zeca e Dindi. Ele mantém o compromisso de casar com sua noiva, a ciumenta Lígia (Luciana Bollina), encerrando um pequeno relacionamento sexual com sua amiga Amélia (Stephanie Serrat). De outro, Dindi, que na verdade se chama Deolinda e mora no Méier, se sente cada vez mais sufocada pelo marido, o militar autoritário Jurandir (Cláudio Galvan).

De repente, “não mais que de repente”, o americano Steve (Cláudio Lins) chega ao Rio de Janeiro, onde seria esperado por Zeca, de cujo pai ele é amigo. Falando relativamente bem português, apesar de um sotaque bem macarrônico, se deixa levar por um taxista malandro que o carrega para conhecer a zona norte da “wonderful city”. Nessa região, perdido em seu caminho, Steve bate à porta de uma desconhecida para pedir ajuda: Deolinda. O relacionamento que nasce entre ela e Steve faz com que Dindi e Zeca se reencontrem. O amor pela música que os une também os leva a abandonar os respectivos cônjuges: Jurandir e Lígia.

O golpe militar de 1964 atinge a todos no Brasil, mas principalmente Amélia. Capturada pelo DOPs, ela é interrogada por Jurandir, que não perdoou Deolinda por tê-lo abandonado. O primeiro ato de “Garota de Ipanema” termina, na melhor cena da peça, com Jurandir, alçado para função de destaque na narrativa, preparando sua vingança.

Pelo exposto, percebe-se que, no meio do primeiro ato, o casal de mocinhos Zeca e Dindi se conheceu, mudou de vida e ficou junto, encerrando o problema que levaria a narrativa adiante. Há dois personagens escadas – Amélia e Steve –, que surgem para caracterizar o contexto; uma coletânea de figuras que une a história ao que está fora dela (Vinícius de Moraes, Roberto Menescal, Nara Leão, Tom Jobim, etc.); e dois antagonistas – Lígia e Jurandir. Nesse segundo, até então um personagem sem maiores funções, concentra-se tudo o que aparentemente sobra de narrativa para todo o segundo ato.

Não convém à crítica revelar toda a história da peça a que parte dos leitores assistirá. Ressalta-se, porém, que o desempenho da vingança de Jurandir tem mais méritos na mudança de caráter de Zeca do que propriamente no seu ato. Essa transformação faz o casal de protagonistas se separar novamente. Sem fôlego, a narrativa recomeça com o desafio insólito de deixar o tempo resolvê-la. Jurandir e Amélia desaparecem, como também todos os demais personagens, mas não de um jeito pior que o de Steve. À luz do que a dramaturgia fez com Zeca, Lígia, que antes era inimiga, surge agora renovada. O que Jurandir separou talvez ela tenha estranhamente o poder de reunir.

O conflito geral, a história de amor entre Zeca e Dindi, se estrutura assim em apenas quatro acontecimentos: eles se conhecem, largam tudo para ficar juntos, se separam e o fim. No meio disso, cenas longuíssimas sem qualquer função relevante servem ou para ilustrar o que aparentemente seria o tema da peça ou para cobrir a carência dos personagens protagonistas com falsas importâncias aos coadjuvantes.

Há ainda, em “Garota de Ipanema, o amor é bossa”, problemas relacionados ao seu entorno. O título remete à canção homônima composta, em 1962, pelo maestro Antônio Carlos Jobim (1927-1994) com letra do poeta Vinícius de Moraes (1913-1980). Segundo o jornal britânico The Guardian, trata-se da segunda música mais tocada no mundo (a primeira é “Yesterday”, dos Beatles). Ela, através da qual a Bossa Nova se tornou um gênero musical universalmente conhecido, foi composta com referência à Helô Pinheiro, por quem na época estava Tom Jobim apaixonado.

Na peça, a canção “Garota de Ipanema” aparece, em várias línguas, no meio do primeiro ato e, em português, no meio do segundo, ou seja, em lugares pouco privilegiados. Não há qualquer menção à Helô Pinheiro e Tom Jobim aparece em uma rapidíssima cena. Dindi, por sua vez, é uma Garota do Méier, o que, resguardado o mérito do debate sociológico possível da questão, é uma opção completamente inadequada em termos de construção do sentido da peça. Apesar de quarenta músicas da bossa nova participarem da trilha sonora, a dramaturgia muito bem poderia (alteradas às pequenas referências à ditadura militar e à guerra no Vietnã) acontecer em qualquer lugar ou momento da história. Isso revela a esterilidade do texto em relação à proposta. Em outras palavras, o público pensa que vai ver uma coisa e encontra outra completamente decepcionante.

Todos esses problemas são desculpáveis em trabalhos dramatúrgicos de quem está começando, como é o caso de Thelma Guedes e também de seus colaboradores Alessandro Marson, Maria Helena Alvim e Newton Canito. Todos eles, já com carreira sólida e muito respeitável na televisão e formação em cinema, “aventuram-se” aqui em projeto caríssimo, dando passos muito maiores que suas pernas. No entanto, fica a pergunta, não a eles, mas a seus produtores: se as emissoras de televisão e as produtoras de cinema não colocam grandes projetos nas mãos de quem não tem experiência, por que o teatro lhes parece tão generoso? Ou por que a Aventura Entretenimento resiste tanto aos mais consagrados dramaturgos do país (e ao que eles podem contribuir) em seus projetos?

O esforço de Gustavo Gasparani e de Kátia Barros
A inexplicável carência de cenários e de figurinos da peça não tem absolutamente nada a ver com o minimalismo na arte do meio do século XX. (Justificar uma coisa com a outra é uma grosseira ofensa.) O que há, na encenação de “Garota de Ipanema, o amor é bossa” é pouco investimento mesmo. Vale, a título de análise, a comparação com “SamBRA”, musical anterior também produzido pela Aventura Entretenimento que igualmente foi dirigido por Gustavo Gasparani. Também sem cenários que pomposamente entram e saem, todo o elenco daquela produção se servia de objetos e de seu próprio repertório corpóreo-vocal para construir panoramas cujos lugares davam conta da localização das cenas. O jogo que aquela montagem propunha com seu público utilizava a criatividade como proposta desde a abertura e até o fim, sempre alimentando a narrativa e a fruição com mais novidades. Não é o que acontece aqui. Em um dado momento, quatro atores balançam duas faixas de tecido azul para dar a ver o mar. Em outro trecho, uma lâmina é sacudida como proposta de trovão. Acaba-se aí a criatividade (?) na composição dos quadros.

É visível que a direção de Gustavo Gasparani, assistido por Pedro Rothe, nesse espetáculo, se apoia essencialmente nas coreografias de Kátia Barros, assistida por Roberta Serrado. Desamparados pela dramaturgia (que limitou, como mais adiante se tratará, o trabalho dos intérpretes) e sem escapes no visual, os dois dependeram unicamente da trilha sonora. Barros faz milagres com as cadeiras, esses os únicos elementos disponíveis, sobretudo na última cena do primeiro ato. E Gasparani tem méritos no modo como articula as cenas através da invasão de composições do coro, localizadas no fundo do palco, à frente na evolução dos episódios.

Um imenso móbile com origamis compõe o paupérrimo cenário de Hélio Eichbauer. Uma explosão de estampas nos poucos figurinos de Marília Carneiro e de Reinaldo Elias (com visagismo assinado por Juliana Mendes) deixa de contribuir visualmente com o espetáculo. O desenho de luz de Maneco Quinderé pouco acrescenta ao panorama tão despojado. A direção musical de Délia Fischer, com supervisão musical de Roberto Menescal e com desenho de som de Carlos Esteves, se omite de conferir identidade à obra, limitando-se a justapor as quarenta canções sem conferir-lhes arranjo aparente no que se refere à coerência. Eichbauer, Carneiro, Quinderé e Fischer são profissionais experientes no teatro (e em outras áreas também), o que alarga a dúvida sobre a responsabilidade da produção nesses resultados.

Cláudio Galvan brilha em participação exuberante!

Stephanie Serrat, Thiago Fragoso e Will Anderson (sentados ao centro)

Will Anderson (Vinícius de Moraes) e principalmente Stephanie Serrat (Amélia) fazem o espetáculo brilhar com potentes, mas pequenos trabalhos de interpretação. Letícia Persiles (Dindi) e mais ainda Luciana Bollina (Lígia), a primeira com bem mais oportunidades que a segunda, além disso, elevam as qualidades do todo com suas também belas vozes. Cláudio Lins (Steve) faz do sotaque americano o único meio pelo qual seu personagem ganha mais destaque. Thiago Fragoso (Zeca) não oferece nem mesmo colaboração similar ao seu papel. Todos esses, no entanto, parecem ter pouco espaço para se movimentar no campo das possibilidades que a dramaturgia lhes possibilita.

Dentre todos, o melhor trabalho é o de Cláudio Galvan (Jurandir). O modo como o intérprete multiplica a importância do seu personagem parece ter modificado a hierarquia dos papeis, atribuindo positivamente, ao fim do primeiro ato e ao início do segundo, a força dos melhores momentos de toda a longa encenação. Sua presença, como vilão e carrasco, é solene, mas também humana, pois ela deixa escapar, através da fúria, certas de marcas de medo que o exibem como mais complexo. Uma participação exuberante!

O belíssimo Teatro Riachuelo
“Garota de Ipanema, o amor é bossa” é um musical produzido por uma grande produtora, financiado por uma empresa de enorme porte e que cobra um valor alto pelo ingresso. Além disso, ele inaugura o belíssimo Teatro Riachuelo, pérola de 1890 restaurada na Cinelândia agora convertida para a maior glória do teatro musical no Rio de Janeiro. Todos esses aspectos participam inevitavelmente da construção do seu sentido e negar-lhes é uma ingenuidade (para não dizer tolice). Cada um deles aumenta a responsabilidade da obra, elevando o número de critérios com que ele deve ser (e é) julgada. Sua falência estética é, portanto, tão dolorosa quanto seria o júbilo de seu sucesso. Por que, com tantas possibilidades, a Aventura Entretenimento mais uma vez decepciona?

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Ficha técnica
Texto – Thelma Guedes (com colaboração de: Alessandro Marson, Maria Helena Alvim e Newton Canito)
Direção – Gustavo Gasparani
Direção musical – Delia Fischer
Supervisão musical – Roberto Menescal
Coreografia – Kátia Barros
Cenografia – Helio Eichbauer
Figurino – Marília Carneiro e Reinaldo Elias
Visagista – Juliana Mendes
Design de som – Carlos Esteves
Desenho de luz – Maneco Quinderé
Produção de elenco – Marcela Altberg
Preparação vocal – Mauricio Detoni
Assistente de direção – Pedro Rothe
Assistente de coreografia – Roberta Serrado
Assistente de direção musical – Claudia Elizeu
Assistente de arranjos – Matias Correa
Assistente de figurino – Luiza Moura
Figurino ‘Dindi’ - Marília Carneiro e Farm
Cenógrafa assistente – Marieta Spada
Pesquisador musical – Rodrigo Faour
Estagiária de direção – Giulia Grandis
Elenco – Letícia Persiles, Thiago Fragoso, Claudio Lins, Stephanie Serrat, Luciana Bollina, Claudio Galvan, Will Anderson, Guilherme Logullo, Eduarda Fadini, Tatih Köhler, Késia Estácio, Ivan Vellame, Chris Penna, Ditto Leite, Ana Varella, Natacha Travassos, Jhafiny Lima, Nay Fernandes, Wallace Ramires, Raphael Najan, Renata Nunes e Gabriel Demartine
Realização – Aventura Entretenimento

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