quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Noés (RJ)

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Foto: divulgação

Leonardo Netto, Plínio Soares, Maureen Miranda, Raquel Alvarenga, Rick Yates e Alexandre Mofati

Oportunidade para estar dentro do Cassino da Urca


A montagem de “Noés” tem dois aspectos muito positivos. O primeiro deles é o conjunto de ótimas interpretações e o segundo é o fato do espetáculo ter cumprido sua primeira temporada nas ruínas do antigo Grill-Room, o teatro do Cassino da Urca. A peça foi escrita por Rafael Neumayr e dirigida por Carlos Gradim. Em sua narrativa, há a intercalação de três histórias diferentes, ficando para o público a tarefa de reconhecer (e de decidir sobre) os elos de ligação entre elas. O título diz respeito a Noé, personagem bíblico a quem Deus teria dado a tarefa de construir uma grande arca capaz de proteger sua família e um casal de cada espécie animal para ser salvos de um enorme dilúvio que destruiria a Terra. Alexandre Mofati, Plínio Soares, Leonardo Netto, Raquel Alvarenga, Maureen Miranda e Rick Yates estão no elenco. A produção ficou em cartaz até o último domingo, dia 20 de novembro e espera-se que ela volte para novas oportunidades.

Falsa analogia
As histórias são bem escritas individualmente, mas o modo como elas aparecem impõe ao espectador o desafio de buscar o sentido possível de sua articulação no espetáculo como um todo. E é aí que está o problema, pois facilmente se identifica uma falsa analogia entre a obra de Rafael Neumayr e a alegoria de Noé a qual o título da peça se refere.

Na narrativa, as ruas estão paradas porque o povo está se manifestando contra o governo. Por causa disso, três duplas ficam impossibilitadas de seguir seu caminho. Lucas (Alexandre Mofati) foi visitar seu amigo Aldo (Plínio Soares), que não sai de casa há tempos porque desenvolveu uma fobia de elevador. Pedro (Leonardo Netto) e Natália (Maureen Miranda) são dois atores que, depois do fim da última apresentação de uma peça, se preparam para ir para suas casas. Moça (Raquel Alvarenga) e Moço (Rick Yates) são dois personagens que estão presos dentro de um carro no meio do trânsito parado. Ela é prostituta e foi contratada por ele, que é professor de língua portuguesa, para um programa sexual. A imobilidade obriga as seis figuras a permanecerem em suas conversas por mais dolorosas que elas possam vir a ser.

Lá pelas tantas, um personagem diz para o outro que, em alguma medida, somos todos como Noé, pois, em meio ao dilúvio, nos abrigamos em uma arca onde esperamos a chuva passar. A lenda de Noé, que repercute em outros personagens similares na mitologia grega, egípcia, chinesa, africana e em muitas outras, é narrada no livro do Gênesis entre os capítulos 5 e 10. Esse livro, cuja autoria é atribuída a Moisés, é considerado sagrado pelos judeus, pelos cristãos e pelos muçulmanos em todas as suas variações. Utilizando a bíblia como parâmetro, é possível aferir que o dilúvio teria acontecido, na Mesopotâmia (onde hoje fica o Iraque), entre 2.370 e 2.072 a.C., isto é, pelo menos, há quarenta séculos. Sua narrativa teria sido transmitida oralmente de geração em geração até ser escrita mil anos depois. Segundo ela, Deus teria se decepcionado com a humanidade e, por causa disso, decidido destruí-la, salvando apenas Noé e sua família. Mandou, por isso, que ele construísse uma arca e abrigasse nela um casal de cada espécie de animal. Depois, durante quarenta dias e quarenta noites, uma chuva torrencial inundou o mundo, matando tudo o que não havia sido salvo por Noé.

Entre essa história e a de Neumayr, há uma contradição. O Noé bíblico vai para a arca para salvar-se a mando de Deus que o privilegiou entre os demais homens da Terra. Os personagens da peça estão presos em lugares distintos por causa das manifestações que visam a um mundo melhor contra a corrupção. Ou seja, no primeiro, o personagem cumpre uma determinação que é externa, uma ordem. No segundo, as figuras estão presas pelo acaso. Noé sabe do que vai acontecer (Gn 6,17) do lado de fora da arca e pacientemente espera durante o dilúvio. Os personagens Neumayr, quando chegaram aos lugares onde estão no início da peça, não sabiam que de lá não poderiam sair. Faz-se, assim, uma analogia entre dois pontos que não são análogos. Sendo falacioso, o argumento da peça desaba, prejudicando a construção do seu sentido. 

A encenação dirigida por Carlos Gradim enfrenta dois desafios. O primeiro deles é da ordem do modo como a dramaturgia está construída e essa questão já foi tratada no parágrafo acima. O segundo diz respeito ao espaço onde o espetáculo acontece. “Noés” fez sua primeira temporada nas ruínas do antigo Cassino da Urca, um lugar importantíssimo para história da cultura brasileira. De maneira controversa, por isso, o espaço acaba funcionando como um espetáculo independente e que concorre com a narrativa que nele acontece.

A história do Cassino da Urca
O Cassino da Urca foi construído sobre o antigo Hotel Balneário, esse que datava de 1922, época do centenário da independência. Foi aberto em 1933 e, durante treze anos, foi um dos lugares mais luxuosos do Rio de Janeiro. No palco do Grill-Room, nome da área onde aconteciam as apresentações artísticas, brilharam nomes como Carmen Miranda, Grande Otelo, Francisco Alves, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira além de Josephine Baker, Nat King Cole e Bing Crosby e de muitos outros ao som de três orquestras que se alternavam em cada noite com estilos musicais diferentes. Na plateia, astros e estrelas internacionais eram assíduos. Entre eles, estavam Walt Disney e seus executivos, que haviam colaborado, ao lado de Getúlio Vargas, para a “política de boa vizinhança”, através da qual o Brasil ganhou notoriedade artística no mundo entre guerras. Em abril de 1946, sem resistir às pressões do jornal O Globo e da igreja católica, o jogo foi proibido no Brasil e o Cassino foi fechado. (Conta-se que a mãe de Roberto Marinho havia exigido do filho que ele parasse de frequentar o lugar, do qual era vizinho, sob pena de ser retirado do comando da empresa.)

Em 1954, a TV Tupi, que havia inaugurado a televisão brasileira no país quatro anos antes, passou a utilizar o antigo Cassino como estúdio, funcionando daí até julho de 1980, quando sua concessão não foi renovada pelo General Figueiredo. Abandonado, o prédio quase foi demolido em 1986 quando foi tombado pela prefeitura. Vinte anos depois, o Instituto Europeo de Design passou a funcionar no local e, desde então, há o projeto de restauração do lugar. Hoje em dia, pilhas de escombros dividem o espaço com a vegetação que cresce nas paredes e com os morcegos, atuais zeladores. Tudo isso tenta, mas não consegue esconder de todo a memória presente no ambiente, essa que é muito forte e, em vários momentos, supera o interesse de qualquer coisa que possa acontecer por lá. Assim, por melhor que seja tudo na peça, a atenção facilmente se perde, impondo barreiras quase intransponíveis ao ritmo da narrativa tanto dramatúrgica quanto cênica.

Ótimo conjunto de elenco e méritos nos demais elementos
Alexandre Mofati (Paulo), Plínio Soares (Aldo), Leonardo Netto (Pedro), Maureen Miranda (Natália), Raquel Alvarenga (Moça) e Rick Yates (Moço) apresentam ótimos trabalhos de atuações. Movimentando-se por caminhos tortuosos, eles exibem segurança plena. Suas vozes ecoam pelo espaço de modo claro e com excelentes entonações. Nas contracenas, mas também individualmente, todos eles deixam ver os contornos de cada quadro em nobre luta contra os desafios, defendendo a narrativa com galhardia no que cabem óbvios elogios à direção de movimento de Daniela Carmona e sobretudo à direção geral de Carlos Gradim.

O desenho de luz de Telma Fernandes, a trilha e instalação sonora de Dr. Morris e o cenário de André Cortez oferecem colaboração aos méritos do todo, aproveitando o espaço nas suas enormes possibilidades quanto à ambientação e à acústica. Como já dito, tudo isso faz o espaço ficar ainda mais importante do que já é, o que é um ponto positivo e ao mesmo tempo negativo nessa montagem complexa. Não há destaques no figurino, esse também assinado por Cortez.

De “Noés”, além das ótimas interpretações, fica o mérito do uso do espaço pelo espetáculo. Visitar o Cassino da Urca é uma oportunidade. Que venham outras!

*

FICHA TÉCNICA:
DIREÇÃO-GERAL: Carlos Gradim
TEXTO: Rafael Neumayr
ELENCO: Alexandre Mofati, Leonardo Netto, Maureen Miranda, Plínio Soares, Raquel Alvarenga e Rick Yates
DIREÇÃO DE MOVIMENTO: Daniela Carmona
DESIGN DE LUZ: Telma Fernandes
CENOGRAFIA E FIGURINO: André Cortez
TRILHA E INSTALAÇÃO SONORA: Dr Morris
PROGRAMAÇÃO DE ÁUDIO: Bruno Carneiro
PRODUÇÃO EXECUTIVA: AM Produções - Mara Vieira
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Tiago Muller
ASSISTENTE DE FIGURINO: Sammara Niemeyer
ASSISTENTE DE CENÓGRAFO: Rodrigo Abreu
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO: Marcelo Aquino e Cacá Araújo
OPERAÇÃO DE LUZ: Tamara Torres
OPERAÇÃO DE SOM: Vitor Vieira
CENOTECNIA: Utopia Arte e Cenografia - Nahin Fernandes
PROJETO GRÁFICO: Alexandre Muner
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Approach Comunicação
EQUIPAMENTO DE SOM: Rz Sound
FILMAGEM E EDIÇÃO: Fitamarela - Arthur Silva
FOTOS: Elisa Mendes
VISAGISMO (Personagem "Moça"): César Marquez
ASSISTENTE ADMINISTRATIVO: Gabriela Carneiro
REALIZAÇÃO: Instituto Odeon
WEBSITE DO INSTITUTO ODEON
www.institutoodeon.com.br

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