sábado, 3 de dezembro de 2016

Lili (RJ)

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Foto: divulgação

Darwin Del Fabro e Suzana Castelo

A versão teatral do filme “A garota dinamarquesa”

A primeira temporada de “Lili” terminou há alguns dias, mas espera-se que esse bonito espetáculo retorne à programação teatral em breve. Trata-se de uma peça emocionante que toca o público através de temas pertinentes à contemporaneidade: a transexualidade e o amor além das diferenças. Com texto escrito por Walter Daguerre e com direção de Susana Ribeiro, a montagem interpretada por Darwin Del Fabro e por Suzana Castelo sofre por questões relacionadas à estética e por algumas indefinições que não a permitem chegar ao máximo de sua potência infelizmente. A força do recente belíssimo filme “A garota dinamarquesa”, de Tom Hooper, com Eddie Redmayne e Alicia Vikander, esse lançado no ano passado, também pode ser o responsável pela expectativa em relação à versão teatral da mesma história. De qualquer modo, eis uma boa produção que merece atenção.

Lili Elbe: menos documental, mais lírico
Segundo a divulgação, o texto de “Lili” está unicamente baseado nos diários de Lili Elbe publicados em 1931, ano de sua morte. Isso explica uma das diferenças entre a peça e o filme “A garota dinamarquesa”, esse que foi inspirado no romance homônimo do americano David Ebershoff, publicado em 2000. Feita em primeira pessoa, a dramaturgia apresenta o ponto de vista particular do personagem-título: suas impressões, seus desejos e seus sonhos. Tornado em palavras, seu olhar chega corrompido pelas emoções com seu fluxo de pensamento organizado a partir dois limites da linguagem escrita. Já o filme, além dessa visão pessoal, explora também o contexto em torno do qual os acontecimentos se deram, esses que talvez tornem a história de Lili ainda mais interessante sob determinados aspectos.

Lili Elbe foi uma das primeiras pessoas a fazer intervenções cirúrgicas de redesignação de gênero. Nascida em corpo de homem, foi batizada como Einar Mogens Andreas Wagener em 1882 na Dinamarca. Aos 22 anos, casou-se com Gerda Gottlieb (1886-1940), sua colega nas aulas de pintura em Copenhagen. Por volta de 1907, a modelo e atriz Anna Larssen (1875-1955) avisou não poder comparecer a uma sessão de pintura no ateliê do casal Wagener, mas acabou indo. Ao chegar, viu Einar vestido de mulher e sugeriu-lhe que ele fizesse isso mais vezes, batizando-a como Lili. Algumas semanas depois, Lili apareceu no Baile dos Artistas e fez um grande sucesso. Em 1912, os Wagener moravam, em Paris, na casa onde havia morrido Oscar Wilde. Na capital francesa, Einar exibia suas obras no Salões enquanto Gerda, uma personalidade de destaque na Arte Decó, trabalhava para a Vogue e para La Vie Parisienne. Suas pinturas de mulheres, que depois se descobriu serem de Lili, faziam muito sucesso. Em 1924, já era de conhecimento público que Lili era Einar, pois ele ia a eventos, fazia recepções em casa e viajava pequenas distâncias como a personagem. Gerda apresentava Lili Elvenes como a irmã de Einar, mais solar que ele e de companhia mais agradável.

Nessa época, Einar se via atormentado pela possibilidade de não ser Lili. O livro “The transvestites: the erotic drive do cross-dress”, do doutor alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935), publicado em 1910, bem como seus estudos e atuação política no campo da sexualidade ainda não eram amplamente conhecidos de maneira que Einar se sentia isolado no mundo. Por volta de 1927, a jornalista de arte Louise (Loulou) Lassen (1876-1947) foi quem, a partir de uma entrevista, sugeriu o nome Elbe no lugar de Elvenes. Assim, a história de Lili Elbe passou a ser conhecida no mundo. Dörchan Richter (1891-1933, que fez cirurgias entre 1922-1931), Carla von Crist (com cirurgias entre 1929-1930), Toni Ebel (1881-1961, entre 1929 e 1931), além de outras mulheres transexuais, tinham passado pela cirurgia de redesignação de gênero também, mas Elbe ficou mais conhecida do que elas e as causas disso valem uma reflexão.

O casamento entre Einar Wagener e Gerda Gottlieb durou 26 anos e, nesse período, não se tem notícias de traições. Em 1930, depois da primeira cirurgia de Lili, o Rei Christian X, declarou a união deles inválida e permitiu a Einar que ele fizesse novos documentos, inclusive um outro passaporte com sua nova identidade: Lili Ilse Elvenes. Em Berlin, quando foi procurar pelo Dr. Magnus Hirschfeld, conheceu outras pessoas que já tinham passado por processos similares aos seus ou ainda estavam neles, mas não estabeleceu relações com elas. Sobre esse momento, declarou a um amigo que elas lhe causavam náusea e que não se sentia atraído sexualmente por homens. Essas questões foram exploradas pela mídia, sobretudo por Louise (Loulou) Lassen, que se interessava pelo tema. Elbe não podia ser visto como um homossexual, tampouco como heterossexual e também não queria ser travesti, causando um choque no pensamento conservador. O termo intersexual só seria cunhado nos anos 40.

Lili Elbe passou por quatro cirurgias. Na primeira, retirou os testículos; na segunda, implantou dois ovários; na terceira removeu o pênis; e, na quarta, implantou um útero (de uma jovem de 26 anos) e construiu uma vagina. Infelizmente, seu sistema imunológico rejeitou os implantes e ele veio à óbito em setembro de 1931, dois meses antes de completar 49 anos. Semanas depois, seus diários foram publicados com o título “De homem para mulher: a confissão de Lili Elbe” com outros textos de Lassen. Gerda estava casada com outro homem em Marrocos e não veio para o enterro do ex-marido. Em 1940, já divorciada, ela morreu pobre e esquecida em Copenhagen.

No que diz respeito à Elbe, além do interesse da mídia pelo personagem, há que se destacar o cenário que ele/ela tinha diante de si. Por piores notícias que se tenha hoje sobre as agressões aos transexuais mesmo em países que se dizem livres como o Brasil, há informações disponíveis. Na época, no período entre guerras, quase nada havia. Einar Wagener, por isso, partia em direção ao quase total desconhecido com coragem. Talvez esse seja um dos pontos mais relevantes de sua história.

No filme “A garota dinamarquesa”, cujo título traz um traço de ambiguidade sobre se se refere à Elbe ou se à Gerda, há dois protagonistas. Na versão de Hooper sobre a de Ebershoff, ao mesmo tempo em que se narra a história de Lili, tem-se o ponto de vista de Gerda muito presente. Na medida em que Einar partia em busca de si, mais sozinho ele deixava sua esposa e melhor amiga. Dessa forma, a disposição em encontrar-se também punha em conflito o abandono. E tudo em uma sociedade, repleta de arte, sim, mas em uma época em que a igualdade de gêneros era um sonho muito distante para as mulheres. Indicada ao Oscar ao lado de Eddie Redmayne (Lili), Alicia Vikander (Gerda) ganhou a estatueta de Melhor Atriz pela brilhante atuação.

Por causa desses pontos, a dramaturgia de Daguerre, ao se concentrar nas visões de Lili, abdica do entorno e dos demais pontos que fazem parte do contexto. Essa opção pode ser considerada empobrecedora se se valorizar o aspecto documental da obra em questão. Por outro lado, há quem possa ver o resultado do texto de “Lili” como mais poético, com um enaltecimento do lirismo no depoimento pessoal. E ambas as percepções, menos que contrastantes, são válidas.

Problemas na direção de Susana Ribeiro
A direção de Susana Ribeiro coloca muitos desafios à narrativa e alguns ela não consegue vencer. Outros sim. Números mais líricos surgem ao lado de aspectos mais documentais como se a peça quisesse apresentar a história, mas também, ao mesmo tempo, chamar a atenção para a sua força ela própria. O palco é mal usado na direção de movimento de Renato Vieira e tem péssimos efeitos estéticos no cenário de Beli Araujo e principalmente no figurino de Antônio Medeiros. Vale uma análise mais demorada sobre esses pontos.

Os pintores Einar (Darwin Del Fabro) e Gerda (Suzana Castelo) surgem em cena em um espaço quase deserto na abertura. Composições com tiras de elástico limitam o fundo e as laterais do palco e um sofá tipo provençal, mas com o estofamento só pintado, está à frente. O negro do fundo do espaço cênico está visível e se repete nas roupas deles: peças de malha mal costuradas em péssimo acabamento. Tudo isso impõe aos dois intérpretes o desafio insólito de dar conta de todo o espetáculo. A dupla se movimenta pelo palco, tentando dar sentido para os espaços e buscando meios de estabelecer algum lirismo com a luz e com tecidos esvoaçantes que se desprendem dos elásticos. Esses esforços, formais demais, emperram a fluência da dramaturgia.

Del Fabro aparece com uma pesadíssima máscara de base no rosto que, na tentativa de esconder suas marcas masculinas, acabam por revelá-las ainda mais. Seus movimentos mais endurecidos contrapõem com a naturalidade do corpo de Castelo, nua e sem maquiagem aparente. Ao longo de toda a primeira parte da peça, a direção de Ribeiro parece não saber o que fazer para esconder o fim da narrativa e, por isso, deixa-a mais evidente.

“Lili” melhora muito a partir do momento em que Einar se veste de mulher. Pouco a pouco, Del Fabro e Castelo vão ficando mais naturais, mais conectados em cena. A dramaturgia também ajuda nisso, porque, como já exposto, é quando os conflitos entre eles e deles consigo próprios ficam mais óbvios. A partir daí, vê-se a narrativa apesar do quadro em que ela se dá. A plateia recebe com emoção os relatos das cirurgias e se encanta com a dedicação mútua da causa Lili por Einar e por Gerda. E isso evidencia o quanto “Lili”, mesmo com problemas, ganha o coração do público.

A luz de Rodrigo Belay e a trilha sonora de Ricco Vianna
Darwin Del Fabro e Suzana Castelo apresentam bons trabalhos de interpretação. Castelo brilha no início da peça e Del Fabro brilha mais no fim dela. A falta de sintonia entre eles e a pouca conexão deles com o quadro talvez justifiquem uma avaliação menos positiva. Se se considerar as dificuldades de ambos, é possível que os aplausos fiquem mais justos porém. Há méritos no modo como dizem o texto, nas expressões faciais e corporais em quase toda a encenação.

A luz de Rodrigo Belay a música original e a direção de Ricco Vianna são os aspectos mais positivos do espetáculo, criando ambientes e energias capazes de contextualizar a narrativa de modo mais colaborativo que os demais elementos. Investe-se na dureza da história, essa, depois de quase cem anos, ainda um dilema para a sociedade. Produções como “Lili” fazem parte de uma história que quer e que precisa se modificar para que tenhamos todos um mundo mais humano. Parabéns.

*

FICHA TÉCNICA

Texto: Walter Daguerre

Direção: Susana Ribeiro

Elenco: Darwin Del Fabro e Suzana Castelo

Música Original e Direção musical: Ricco Vianna

Direção de movimento: Renato Vieira

Cenografia: Beli Araujo

Figurinos: Antônio Medeiros

Iluminação: Rodrigo Belay

Preparação vocal: Rose Gonçalves

Criação de acessórios: Paulo Bijoux

Programação Visual: Andrea Batitucci

Mídias Sociais: Leo Ladeira

Fotografia: Lucio Luna

Preparação Corporal: Manoela Cardoso

Coach de Pintura: Pablo Ferretti

Orientação Fonoaudiológica: Verônica Machado

Direção de Produção: Alice Cavalcante – Sábios Projetos

Produção Executiva e Administração de Temporada: Luísa Reis

Idealização e produtores associados: Darwin Del Fabro e Suzana Castelo

Realização: Sábios Projetos e SESC Rio

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany



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