terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Se meu apartamento falasse (RJ)

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Foto: divulgação


Marcos Pasquim, Malu Rodrigues e Marcelo Medici

Musical para dormir

O musical “Se meu apartamento falasse” é a primeira bomba da dupla Charles Moeller e Cláudio Botelho desde muito tempo. A peça, baseada em um premiado filme de Billy Wilder, por vários motivos, não se conecta com a contemporaneidade e depende demais do carisma do elenco sobretudo no Brasil, que praticamente desconhece as canções e a obra original. Ainda que a produção se esmere – como sempre – em oferecer um resultado estético de alta qualidade, a dificuldade do alcance dos objetivos parece cada vez mais inviável ao longo da sessão. Com música de Burt Bacharah, a montagem é protagonizada por Marcelo Medici, Malu Rodrigues e por Marcos Pasquim. No entanto, é Maria Clara Gueiros, em pequeníssima aparição, a única a realmente apresentar bom trabalho. Tendo estreado no último final de semana no Teatro Bradesco, na Barra da Tijuca, o espetáculo deverá ficar em cartaz ao longo de todo o verão.

O mofo da dramaturgia
O filme “The apartment”, em que o musical “Se meu apartamento falasse” se baseia, foi a produção de maior sucesso do ano de 1960-1961, concorrendo unicamente com os épicos religiosos “Ben-Hur” e “Spartacus” e com o suspense “Psicose”. Trata-se de uma comédia romântica dirigida por Billy Wilder, que no ano anterior havia lançado “Quanto mais quente melhor”, e protagonizada por Jack Lemon e por Shirley MacLaine. Todo o sucesso da história se pautava em uma tese de liberdade sexual que, na época, ganhava coro: jovens executivos (casados) de uma seguradora e garçonetes da cafeteria da mesma empresa tinham encontros íntimos no apartamento de um funcionário menor. Eis, porém, que Chuck Baxter se vê apaixonado pela amante do diretor e precisa escolher entre o sucesso na vida profissional ou na vida afetiva. Tendo estreado em 15 de junho de 1960, o filme concorreu ao Oscar do ano seguinte e recebeu nada menos que dez indicações e cinco estatuetas, incluindo Melhor direção, Melhor roteiro e Melhor filme.

A versão para musical chamada “Promises, promises” estreou em dezembro de 1968. Com roteiro de Neil Simon (que tinha assinado “Sweet Charity”) e músicas de Burt Bacharah, ela ficou mais de três anos em cartaz na Broadway e conseguiu sete indicações ao Tony e as estatuetas de Melhor ator a Jerry Orbach, que interpretava Chuck Baxter; e a de Melhor atriz coadjuvante a Mariah Murcer, que dava vida à Marge Macdougall (o papel que Maria Clara Gueiros agora tem no teatro). Em 2010, uma nova produção foi lançada com Sean Hayes e Kristin Chenoweth nos papeis principais. A temporada dela foi de sete meses e ganhou quatro indicações ao Tony, incluindo as estátuas de Melhor ator para Hayes e a de Melhor atriz coadjuvante para Katie Finneran, essa no papel de Marge. Com coreografias exultantes de Rob Ashford, a montagem acrescentava às músicas conhecidas do repertório americano um frescor juvenil que auxiliava a esconder o mofo da dramaturgia. Infelizmente, não se pode dizer que aconteceu o mesmo com a versão brasileira do texto.

Considerando os sucessos obtidos nas versões fílmica e da Broadway, talvez seja injusto responsabilizar unicamente a dramaturgia pelo insucesso da versão brasileira que aqui se analisa. No entanto, ao assistir ao espetáculo mantendo os olhos na pauta pública das discussões contemporâneas, facilmente se identificará a desconexão entre “Se meu apartamento falasse” e o hoje em nossa cidade. O tema de um grupo de altos executivos de uma seguradora – homens brancos e bem-sucedidos – felizes (e depois indignados) por causa de um apartamento de um contador aonde podem levar suas amantes já prenuncia que se trata de uma história de época. Isso não seria um problema se não resultasse na alegria de que esse tempo já passou. Mulheres em posições inferiores, enganadas orgulhosamente por seus machos (que não abandonam suas esposas) até uma protagonista que tenta o suicídio por causa disso podem ter sido um ótimo mote para uma comédia sobre as loucuras e o esplendor da juventude, mas hoje em dia é, na melhor das hipóteses, esquisita. Por mais que se torça pela vitória do personagem principal, essa posição não impede um ponto de vista sobre o todo ao qual ele está vinculado. E aí seria preciso que todos os outros signos que acompanham o texto na viabilização do espetáculo tivessem outra importância na defesa da obra. Aqui eles ajudam a prejudicá-la.

Problemas da encenação
Em termos da encenação assinada por Charles Möeller e por Claudio Botelho, “Se meu apartamento” se escreve em cena sem contrabalancear os problemas da dramaturgia. A montagem brasileira parte de escolhas de elenco pouco contributivas, apresenta uma concepção de cenário difícil e não traz nenhuma coreografia relevante. Em resumo, é um musical para dormir quando não para se irritar.

Se os oito atores que participam da produção são considerados bons comediantes, nenhum deles carrega midiaticamente o estigma de símbolo sexual, o que poderia auxiliar na construção do sentido do todo como uma comédia juvenil (Pasquim sustentou o título nos anos 90). O exato oposto, porém, se pode dizer do elenco feminino, o que desequilibra o discurso cênico vertiginosamente. Se as letras são a materialidade da literatura, o teatro se imprime na aparência dos atores. E, longe de aqui fazer considerações sobre a beleza dos intérpretes (o que é realmente muito relativo e, por isso, nada importante), quer-se analisar o modo como suas figuras participam da construção do todo. Há em geral um esforço na piada que, se ocorre, não deixa de revelar uma gama enorme de preconceitos.

O modo como a orquestra aparece ao longo de toda a encenação, fazendo parte de um cenário de época de Rogério Falcão, ajuda a pesar a peça, fazendo-a parecer muito clássica e quase nada coerente com as aventuras sexuais da dramaturgia. Vale lembrar que, nos anos 60, o público do filme de Billy Wilder e da primeira montagem de “Promises, promises” vestia essencialmente o mesmo guarda-roupa dos personagens e tinha em suas casas um mobiliário com a mesma estética da do palco. Toda a produção é tão elegante e bem cuidada como sempre é. E valem os elogios ao figurino de Marcelo Marques e à iluminação de Paulo Cesar Medeiros pela valorização visual de todo o contexto. A falta de sujeira, porém, nem leva para a magia, nem debocha da realidade.

Ainda observando a encenação, “Se meu apartamento falasse” muito bem poderia ser comparado a “Como vencer na vida sem fazer força”, que a dupla Möeller e Botelho dirigiu em 2013 e que, na Broadway, sucedeu “Promises, promises” no currículo do coreógrafo Rob Ashford. O que distancia ambos é o sexo: todo o calor de “Como vencer” era lucro para aquela narrativa fria, mas aqui, tem-se a exata contrapartida. Às coreografias de Alonso Barros e à direção musical de Marcelo Castro falta um ritmo que, sendo metáfora para o desejo dos personagens, substituiria a monotonia que sobre nessa cena.

Maria Clara Gueiros
Méritos do elenco coadjuvante, desméritos dos protagonistas
Sobre o trabalho do elenco, não há muitos aspectos positivos para serem mencionados, embora negativos tampouco. Maria Clara Gueiros (Marge Macdougall) e André Dias (Dr. Dreyfuss) exploram seus pequenos personagens em um visível esforço para torná-los marcantes através de construções bem farsescas e têm sucesso nesse intento. Patrick Amstalden (Karl Kubelik) e Julie (Enfermeira Kreplinski), com oportunidades ainda menores, também têm sucesso dentro das possibilidades que lhe a princípio lhe apareceram. Antônio Fragoso, Fernando Caruso, Renato Rabelo e Ruben Gabira apresentam uma abordagem cômica para a qual aparentemente foram escalados com resultados até surpreendentes dentro dos desafios da proposta e Marcos Pasquim, na figura de vilão, atinge mérito similar. No entanto, todos esses têm aparições pouco influentes na dramaturgia e suas contribuições, assim, mudam o quadro muito sutilmente.

São nos protagonistas Malu Rodrigues (Fran Kubelick) e Marcelo Medici (Chuck Baxter) que se encontram os maiores problemas. Não há drama em qualquer um deles, mas, ao contrário, uma linha reta sobre a qual nada além das palavras se vê. Comendo os fins das frases musicais e inexplicavelmente substituindo, apesar de sua belíssima voz, o canto pela prosódia na defesa das canções, em Rodrigues nesse espetáculo, não se vê curva dramática, mas as mesmas reações na dor e na alegria, na excitação e na sonolência. Pior do que isso, em Medici, não se encontra a única questão realmente relevante na dramaturgia: ou investir no sucesso profissional ajudando seu chefe ou no sucesso afetivo na conquista pela amada. Em lugar disso, desde sempre, o público já sabe qual é a decisão de seu Baxter, o que previne o espetáculo de algum maior interesse da audiência. A interpretação da canção final, que dá título para o todo, surge na estreia com desafinos brutais.

Burt Bacharah
Burt Bacharah, compositor americano de grande renome, já foi tema de espetáculo de Charles Möeller e de Claudio Botelho, há quinze anos, em produção chamada “Cristal Bacharah”. A obra do músico, da qual fazem parte canções como “I say a little prayer”, “A house is not a home”, “Raindrops keep fallin’ on my head”, merece ser revisitada. Aqui vale rir com Maria Clara Gueiros em sua cena mais aparentemente minúscula do que de fato seja.

*

Ficha técnica:

‘SE MEU APARTAMENTO FALASSE ...’

Um espetáculo de CHARLES MÖELLER & CLAUDIO BOTELHO

Texto de NEIL SIMON
Baseado no roteiro do filme THE APARTMENT de BILLY WILDER e I.A.L. DIAMOND - vencedor do oscar de melhor filme de 1961

Musica de BURT BACHARACH

Letras de HAL DAVID
Produzido originalmente da Broadway por DAVID MERRICK

Com MARCELO MEDICI, MALU RODRIGUES, MARCOS PASQUIM, MARIA CLARA GUEIROS, FERNANDO CARUSO, ANDRÉ DIAS, ANTONIO FRAGOSO, RENATO RABELO, RUBEN GABIRA, PATRICK AMSTALDEN, KAREN JUNQUEIRA, JULLIE, CARU TRUZZI, LOLA FANUCCHI,PATRICIA ATHAYDE, DUDA RAMOS, MARIANNA ALEXANDRE, MAYRA VERAS e YASMIN LIMA.

CHARLES MÖELLER
Direção

CLAUDIO BOTELHO
Versão Brasileira

MARCELO CASTRO
Direção Musical, Arranjos Adicionais e Regência

ALONSO BARROS
Coreografia

CHARLES MÖELLER
Direção de Movimento

ROGÉRIO FALCÃO
Cenário

MARCELO MARQUES
Figurinos

ADEMIR MORAES JR.
Design de Som

PAULO CESAR MEDEIROS
Iluminação

BETO CARRAMANHOS
Visagismo

TINA SALLES
Coordenação Artística

CARLA REIS
Produção Executiva

Patrocinio: Elevadores Atlas Schindler

Apoio Cultural: Hilton Barra Rio de Janeiro

Realização: M&B e OPUS PROMOÇÕES

O Jornal – The Rolling Stone (RJ)

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Foto: divulgação


Marcos Guian e Danilo Ferreira

Uma peça essencial

A excelente “O Jornal – The Rolling Stone” é a mais nova peça com a assinatura Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas em cartaz no Rio de Janeiro. Com texto do jovem inglês Chris Urch, ela narra uma dolorosa história de amor entre dois jovens condenados por serem homossexuais em uma sociedade conservadora. O drama, que de modo brilhante oferece pauta para discussões sobre preconceito racial, fundamentalismo religioso, colonialismo e machismo, está situado na contemporaneidade e tem seu lugar em Uganda, no centro leste africano. Trata-se de uma abordagem comovente que, para além dos seus méritos sociais, vale a pena de ser vista pelo brilhantismo da direção, das interpretações e do modo como se articulam todos os seus outros aspectos. É uma dos melhores espetáculos teatrais de 2017 na capital fluminense, ficando em cartaz até o fim do próximo mês de fevereiro no Teatro Poeira, em Botafogo.

Uma história que precisa ser contada
Em uma pequena comunidade religiosa anglicana, os irmãos Joe, Dembe e Wummie começam a reorganizar suas vidas depois do recente falecimento de seu pai, que lhes deixou uma vida financeira apertada. O quadro tem chances de melhorar a partir da influência política de Mama, uma vizinha do trio, que é tida como uma das pessoas mais respeitadas na congregação local. É graças a ela que Joe, o mais velho, ascende ao posto de Pastor. Ela acredita que a juventude de Joe, em meio a experiência de líderes religiosos de idade muito avançada, poderá representar arma eficaz contra as transgressões morais das novas gerações. Nessa luta ultraconservadora de valores considerados “santos”, um pequeno jornal comunitário passa a publicar nomes e fotos de pessoas que devem ser castigadas por seus atos "antibíblicos". Entre os condenados, está um amigo de infância de Dembe, que acaba sendo morto por seus vizinhos pelo exercício de sua homossexualidade.

Se assusta Dembe, a morte horrível de um amigo de infância não o impede de, em segredo, manter encontros íntimos com Sam, um jovem médico nascido na Irlanda do Norte, mas cuja mãe é ugandesa como o namorado. A princípio, nem um nem outro percebem a seriedade do contexto, mas pouco a pouco os atos cada vez mais violentos em prol de uma “limpeza religiosa” parecem se tornar gradativamente mais aceitos na comunidade e, por isso, mais perigosos para o casal. A Sam e principalmente a Dembe, caberão enfrentar os desafios juntos ou separados.

A dramaturgia ficcional de “O Jornal – The Rolling Stone” (“The Rolling Stone”) se refere a um pequeno jornal de uma localidade de Kampala, a capital de Uganda, que funcionou entre agosto e novembro de 2010. A publicação, assinada por três jovens universitários da Universidade Federal de Makerere, publicou nomes e fotos de centenas de homossexuais, exortando para que fossem linchados em uma ode ao preconceito. No país, onde praticamente nem luz elétrica tem, a prática da homossexualidade é considerada criminosa, estando o homossexual sujeito à prisão perpétua se for pego em flagrante a partir de lei federal de 2014. (Antes, estava-se sujeito à pena de morte.) O ativista David Kato (1964-2011) foi uma das cem pessoas listadas em outubro de 2010 pelo “The Rolling Stone”. Não há exatamente ligação direta entre a denúncia e o assassinato, e explora-se o fato de que o assassino Sidney Nsubuga Enoch, hoje condenado a trabalhos forçados, era um garoto de programa que não foi pago pela prestação de serviços sexuais. No entanto, desde o ponto de vista do Brasil, sabemos que homofobia e fundamentalismo religioso são males que andam de mão dadas, sim.

A bíblia, uma coleção de livros milenares que reúne quase a maior parte da humanidade em torno de um conjunto de valores culturais, foi durante muito tempo e ainda é em alguns países o único padrão legal para as normas civis. Uganda é um exemplo desses países. No livro, em toda a sua enorme extensão, há apenas três versículos diretamente relacionados à prática da homossexualidade. No Antigo Testamento (seguido por judeus, muçulmanos e cristãos), em Levítico (Lv 18,22), consta que é abominável um homem deitar-se com outro como se fosse mulher. No Novo Testamento (seguido somente pelos cristãos), na carta de São Paulo aos Romanos (Rm 1, 26-27), em uma lista de sinais de que o homem mergulhou na escuridão contra Deus, o autor cita entre eles o abandono do homem “do uso natural” da mulher, apaixonando-se por outro homem e fazendo entre si “coisas vergonhosas”. E, na primeira carta do mesmo São Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 9-10), entre uma lista de pessoas que não herdarão o Reino de Deus, consta os efeminados. Deixando de lado todas as inúmeras questões da ordem da tradução de um livro que se arrastou copiado a mão por entre quatorze e dezessete séculos até ser impresso pela primeira vez, e, a partir daí, traduzido novamente outras incontáveis vezes para idiomas muito diferentes ao redor do mundo; e, deixando de lado também que apenas três versículos, em um universo de aproximadamente trinta e cinco mil, significa nada, pode-se dizer que a relação entre fundamentalismo religioso e homofobia é, pelo menos, ignorância. Nada aparece sobre o tema em nenhum dos quatro livros do Evangelho e, de maneira muito mais contundente, aparecem prescrições contra o adultério, o assassinato, a avareza ou a falta de fé, por exemplo. Certo, pois, é o fato de que o estímulo ao regramento sexual, na valorização do comportamento heteronormativo, antes de estar baseado em uma defesa da moral bíblica, tem a ver com jogo político. Menos numerosamente voltados à constituição de família, não-heterossexuais fazem da liberdade uma poderosa arma em benefício do próprio sucesso intelectual e financeiro. E é desse sucesso que todos os homofóbicos têm medo: não tem nada a ver com a salvação.

O elenco em cena

“O Jornal – The Rolling Stone”, belíssima tradução de Diego Teza para a nona obra dramatúrgica do jovem Chris Urch, é uma das primeiras montagens internacionais do texto. Os aspectos estéticos da dramaturgia revelam excelente ritmo e elogiável cuidado com as palavras além de uma destacável construção de personagens e desenho da narrativa. Comparado no mundo ao clássico “As bruxas de Salém”, do americano Arthur Miller (1915-2005), mas também fácil de ser associado a “O santo inquérito”, do brasileiro Dias Gomes (1922-1999), eis aqui uma história que precisa ser contada.

No todo e em cada parte, grandes trabalhos de direção e de interpretação
A direção compartilhada de Kiko Mascarenhas e de Lázaro Ramos, com assistência de Ana Luiza Folly, tem o mérito de instaurar na abordagem um quê de artístico que nutre o drama positivamente. A musicalidade das palavras, o movimento dos atores no espaço, o modo como as cenas estão articuladas, o figurino e a trilha sonora, entre outros elementos em conjunto, inauguram uma atmosfera mítica. O Brasil pouco conhece da África como um todo e sabe menos ainda de Uganda em específico. E Mascarenhas e Lázaro não fazem desse desconhecimento um entrave para a fruição da peça, mas parecem associar na encenação o particular e o universal, fazendo das questões locais metáfora para uma triste narrativa que poderia acontecer (e acontece) em qualquer lugar do mundo. De modo positivo, eles aproveitam para tematizar o preconceito não como uma característica de um terminado tempo ou grupo social, mas como uma mazela que precisa ser erradicada esteja onde estiver.

A história, porém, não é ainda marcada em cena apenas por esse tipo de investimento estético. “O Jornal – The Rolling Stone” permanece fazendo conexão com a verdade além da cena pelo modo como os atores se relacionam com o público. Há olhares diretos, há aproximações físicas e todo um conjunto de silêncios por meio dos quais as catarses conseguem se realizar. Todos os intérpretes mobilizam um conjunto de qualidades artísticas que aproximam seus corpos discursivos da realidade: não se trata de uma tragédia (força contra o qual não poderá o homem lutar), mas de um drama (realidade que precisa ser alterada).

Todo o elenco apresenta excelente trabalho mesmo individualmente. Danilo Ferreira (Dembe), Indira Nascimento (Wummie) e André Luiz Miranda (Joe) dão vida a um trio de irmãos tão próximos no discurso, como também nas expressões, nos movimentos dos corpos, nas intensidades das emoções. Heloisa Jorge (Mama) no falar é tão sonora quanto silenciosa é Marcela Gobatti (Naome), sua filha, ambas explodindo nos medos que as atemoriza nos quadros onde aparecem suas personagens. Marcos Guian (Sam), trazendo uma dose de leveza inicial, é a única figura estrangeira do coletivo, essa que acaba submersa no desenrolar da trama, o que é justamente a parte mais importante da história. Os seis intérpretes têm pouca experiência em teatro, mas isso só se descobre lendo sobre eles além da narrativa. Quem os vê no palco alcança apenas felizes méritos aos quais se deve aplaudir.

Uma peça que precisa ser vista
“O Jornal – The Rolling Stone” é, além de tudo, uma peça que vale a pena ser vista pelo preciosismo na contribuição dos demais elementos estéticos. O desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros recorta os personagens no espaço, criando quadros de íntima beleza no oferecimento de pontos de vista tocantes. Os figurinos de Tereza Nabuco colaboram com essa composição, explorando desde os níveis mais superficiais da África Mítica até elementos de uma cultura mais urbana e globalizada. A trilha sonora de Wladimir Pinheiro age no mesmo sentido, começando pelo hino nacional da África do Sul, que é também uma canção-tema para o continente em geral, até ir a melodias mais originais e igualmente belas.

Por causa do tema, mas sobretudo pelo modo como o debate se estabelece no campo estético, “O Jornal – The Rolling Stone” merece lugar de destaque na programação teatral desde fim de primavera e início de verão. Aplausos!

*

Ficha Técnica
Texto de Chris Urch
Tradução de Diego Teza
Direção de Kiko Mascarenhas
Codireção de Lázaro Ramos
Com André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam)
Assistência de Direção de Ana Luiza Folly
Direção de Movimento de José Carlos Arandiba (Zebrinha)
Preparação Vocal de Edi Montecci
Realização e Produtores Associados Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas
Produção KM ProCult e BR Produtora
Direção de Produção Viviane Procópio e Radamés Bruno
Produção Executiva e Administração Viviane Procópio
Assistência de Administração Jandy Vieira
Equipe de Produção Igor Dib, Milena Garcia e Diego Teza
Iluminação Paulo César Medeiros
Assistência de Iluminação Júlio Medeiros | Montagem de Luz Boy Jorge, Luíza Ventura, Fabiano Gomes, Vilmar Ollos eRodrigo Emanuel
Operação de Luz Walace Furtado
Trilha Sonora Original Wladimir Pinheiro
Operação de Som Marcito Vianna
Estúdio de Gravação "DRS" e "FD"
Cantores Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone, Wladimir Pinheiro
Cenografia Mauro Vicente Ferreira
Assistência de Cenografia Rogério Chieza
Construção de Cenário Em Família Cenografia e Eventos
Adereços Mauro Vicente Ferreira
Figurinos Tereza Nabuco
Assistência de Figurinos Júlia Custódio
Costureiras Adélia Andrade e Severina da Silva Viana (Mainha)
Calçados Jailson Marcos
Assessoria de Imprensa de Antonio Trigo
Comunicação Web Urgh
Arte e Lay Out do Projeto Léo Dória / BR Produtora
Projeto Gráfico Novo Traço
Fotos de Estúdio Jorge Bispo

sábado, 9 de dezembro de 2017

[nome do espetáculo] (RJ)

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Foto: divulgação


Carol Berres, Junio Duarte, Caio Scot e Ingrid Klug

Lindas vozes em um dos melhores musicais do ano no Rio

O excelente musical “[nome do espetáculo]”, com direção de Tauã Delmiro e com direção musical de Gustavo Tibi, é a primeira versão brasileira do norte-americano “[title of show]”, de Jeff Bowen e de Hunter Bell, que foi uma sensação em Nova Iorque em 2008. O elenco dessa montagem, formado por Caio Scot, Junio Duarte, Ingrid Klug e por Carol Berres, com destaque mais significativo para essa última, apresenta, entre outros méritos, um belíssimo trabalho vocal. Sozinhos ou em conjunto, eles cantam tão lindamente que se sai do teatro com as músicas desconhecidas no ouvido além do coração cheio e de uma forte crença na humanidade. São para essas coisas, afinal, que um musical serve, não? Tendo cumprido uma primeira temporada no Solar de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, entre 4 de novembro e 4 de dezembro, espera-se que a produção retorne em cartaz e viaje pelo país com sua enorme beleza.

Dramaturgia brilhante
O texto, que foi indicado ao Tony Award de 2008, é nada menos que brilhante. Isso porque ele catalisa, na sua estrutura fundamental enquanto literatura, as marcas que vinculam a sua dramaturgia à sua própria tradução para o palco. Sabemos que uma das diferenças mais brutais entre a arte literária e o teatro é o seu vínculo com o presente. Enquanto um texto dramático, um romance, um poema duram milênios após a sua escritura e as relações da obra com o seu autor são muito pueris, o texto cênico só dura o tempo da apresentação e, a menos que se disfarce muito, a forma do ator é a base para a forma do personagem. “[nome do espetáculo]”, já no título, deixa claro o espaço para o agora. Mais do que o nome da peça, é um buraco onde se pode encaixar qualquer nome. É uma espécie de presença-ausência, sendo presente porque existe, sendo ausência porque não descredibiliza a interação.

Na narrativa, a iminência de um Festival de Teatro mobiliza um jovem compositor chamado Jeff (uma óbvia referência ao compositor Jeff Hunter) e um jovem dramaturgo chamado Hunter (alusão a Hunter Bell) a escreverem uma peça original para participar do evento. Como uma medida de proteção contra o bloqueio criativo, a dupla investe no registro de tudo o que lhes vem à mente, de tudo lhes acontece. Sendo os dois personagens figuras discursivas, existentes apenas como parte do acontecimento teatral e por motivação das ações dos atores em consideração ao público que lhes assiste no ato do espetáculo, de repente, o texto que Jeff e Hunter criam passa a ser, ao mesmo tempo, a dramaturgia que eles elaboram, a peça que eles apresentam, mas também o elo que os une aos atores que lhe dão aparência e ao público que lhes frui. Nos anos 70, a grande pesquisadora francesa Anne Übersfeld (1918-2010) concluiu que o signo teatral era triádico porque, em um só momento, fazia referência a si mesmo, ao contexto onde ele surge e ao além do palco aonde ele dirige. Aqui, desde o ponto de vista da dramaturgia, há um quarto nível: em “[nome do espetáculo]”, o signo teatral se refere à natureza da sua constituição.

Existe uma clara ligação entre “[nome do espetáculo]” e “Seis personagens à procura de um autor”, do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), pois em ambos o texto teatral em específico fala sobre a materialidade do texto teatral em geral, sendo os dois exemplos de metateatro. Os autores Jeff Bowen e Hunter Bell, no entanto, vão além. Nesse musical, eles não só tornam o teatro um dos principais assuntos de sua dramaturgia, como cavam buracos para a encenação entre as palavras escritas no papel. Nesses gaps, será onde o espetáculo vai se enfiar e tornar as palavras em cenas. “[title of show]” foi desenvolvido para a primeira edição do New York Musical Theater Festival, que aconteceu em setembro de 2004. Além de Bowen e de Hunter, as atrizes Heidi Blickensataff e Susan Blackwell, e o pianista Larry Pressgrove, estavam em cena e consequentemente viraram personagens. Dois anos depois, quando  a produção ganhou uma pauta na Off-Broadway, a dramaturgia mudou para incluir os acontecimentos do Festival. Em 2008, na Broadway, houve novas mudanças. Mudar, nesse sentido, não é um mero efeito de aproximação entre o palco e a plateia. É a própria ideologia dessa dramaturgia que, aparentemente, se reconhece como somente válida no aqui e no agora da sua viabilização em cena seja em qual país ou em qual época for.

A versão brasileira, assinada por Luisa Viana, pelos atores Caio Scot, Carol Berres e Junio Duarte e pelo diretor Tauã Delmiro, mantém os nomes dos personagens de cena como Jeff, Hunter, Heidi e Susan, mas modificam quase todas as inúmeras referências. Surgem, apenas para dar alguns exemplos, a Lapa, o Aterro do Flamengo, o Theatro Net Rio. Aparecem Mirna Rubim, Charles Möeller e Cláudio Botelho. São citados vários musicais produzidos no Brasil recentemente, desde “Barbaridade” até “60! Década de Arromba – Doc. Musical”, passando por “Rent” e “Wicked”. Toda a estrutura, apoiada sobre o universo das produções de teatro musical no Brasil, a princípio, se se afastam de quem não está inserido nesse mundo, logo em seguida, cedem seu lugar de importância para algo muito mais nobre: o desejo humano natural de ser reconhecido.

Embora constituído de um só ato de cerca de noventa minutos, “[nome do espetáculo]” pode ser dividido em duas partes para fins de análise. A primeira diz respeito à caminhada dos quatro personagens até uma primeira temporada de sucesso em um grande teatro de sua cidade, ou seja, a conquista do topo. Na segunda, trata-se da manutenção do lugar conquistado. A partir dessa observação, nota-se que, de início, o problema do drama é a realização de um sonho. Mas esse problema se transforma: o sonho muda de lugar, o limite fica mais longe. E é aí que os personagens realmente aparecem. Nesse momento, vem à superfície o humano – a ambição, a frustração, o medo, a ira, a responsabilidade para com a memória da infância. E, apesar de todas as marcas do aqui e do agora, “[nome do espetáculo]” se torna tão atemporal quanto qualquer outro clássico. Um texto brilhante.

Excelente direção de Gustavo Tibi
Quanto à montagem brasileira, “[nome do espetáculo]” mantém o mesmo ideário estético do seu original “[title of show]”. Estão nessa versão o clima de “ação entre amigos”, capaz de aproximar o espetáculo do público; um excelente trabalho musical, que dá conta de lindas partituras difíceis; e uma estética interpretativa carismática porque oposta a construções de personagem muito complexas. Com mão firme, a direção de Tauã Delmiro não revela a sua inexperiência na função, mas, ao contrário, exorta um enorme talento em criar quadros cheios de ironia, graça e com excelente uso do tempo. Vale considerar ainda a materialização do conceito: uma crítica bem humorada à lógica das produções de musical aliada a um tom tão realista quanto o gênero, em sua melhor potencialidade, permite.

Em mais alto destaque na produção, está a direção musical de Gustavo Tibi, essa contemplável pela indescritível beleza das vozes dos quatro intérpretes em conjunto, mas também em cada parte. O espetáculo, inteiramente desconhecido no Brasil (e também não muito famoso nem mesmo em seu país de origem), por isso, consegue sugerir suas melodias à prisão dos ouvidos mais desavisados. Aplausos à direção vocal de Rafael Villar e ao designer de som Gabriel D’angelo.

O cenário de Cris de Lamare, atendendo ao texto, é composto por quatro cadeiras, cada uma de forma e cor diferente, talvez se manifestando em favor ao modo como seres diferentes constituem uma harmonia na vida e nos musicais. Os objetos sustentam o clima simples e intimista de um musical que nasce e sobrevive em paralelo às grandes produções com ambientes que sobem e descem das coxias. O figurino assinado pelo diretor age no mesmo sentido positivamente. A iluminação de Paulo César Medeiros aumentou o espaço do palco do Solar de Botafogo, aproveitando-o em sua máxima potencialidade de maneira muito meritosa.


A potência e a beleza da voz de Carol Berres
O conjunto das interpretações é bastante positivo. Caio Scot (Hunter) e Junio Duarte (Jeff) protagonizam uma dupla de amigos muito carismática. Em torno de seus personagens, giram oposições e similaridades que, ora os aproximam, ora os diferenciam, mas sempre os mantêm próximos das pessoas que conhecemos no além da narrativa. Os intérpretes parecem fugir de estereótipos, investindo nas chances que suas figuras terão ao longo da peça de ganhar cores mais intensas. Scot é mais privilegiado do que Duarte, porque o personagem do primeiro é o único da narrativa que tem uma curva dramática relativamente acentuada. No entanto, vale dizer que ambos aproveitam bastante bem as oportunidade que têm. O elenco é composto também por Ingrid Klug, que interpreta Susan, a figura cômica do grupo. Com excelente timing de comédia, a atriz garante os momentos mais engraçados da sessão além de oferecer números musicais bastante meritosos. Carol Berres, com uma voz potentíssima e um excelente trabalho de corpo, é quem melhor se destaca. Trata-se de um fenômeno no cenário do teatro musical brasileiro sob a qual devem-se recair as mais criteriosas atenções. No todo, eis um excelente conjunto.

“[nome do espetáculo]”, argumentando em torno de si e sobre si enquanto existe e se apresenta, é uma gratíssima surpresa entre as oportunidades teatrais de 2017. Há de ser em 2018 também a partir dos enormes talento e técnica que seus realizadores trazem à programação, mas principalmente pela interessada resposta de curadores e, por fim e mais importante, do público afeito a bons musicais. 

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Ficha Técnica:
TEXTO ORIGINAL: Hunter Bell
LETRAS E MÚSICAS ORIGINAIS: Jeff Bowen
VERSÃO BRASILEIRA (TEXTO E MÚSICAS): Caio Scot, Carol Berres, Junio Duarte, Luisa Vianna e Tauã Delmiro
DIREÇÃO ARTÍSTICA: Tauã Delmiro
ELENCO: Caio Scot, Carol Berres, Gustavo Tibi, Ingrid Klug e Junio Duarte
STAND-IN: Catherine Henriques
CENÁRIO: Cris de Lamare
ASSISTENTES DE CENOGRAFIA E ADEREÇOS: Fernanda Correia e Silas Pinto
FIGURINO: Tauã Delmiro
ILUMINAÇÃO: Paulo César Medeiros
DIREÇÃO MUSICAL: Gustavo Tibi
DIREÇÃO VOCAL: Rafael Villar
DESIGNER DE SOM: Gabriel D’Angelo
OPERADOR DE SOM: Cidinho Rodrigues e Erick Lima
OPERADOR DE LUZ: Dans Souza
MICROFONISTA: Manuela Hashimoto
DESIGNER GRÁFICO: Thiago Fontin
FOTOS DE DIVULGAÇÃO: Bárbara Lopes
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Manuela Hashimoto
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Fernanda Alencar
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Julyana Caldas – JC Assessoria de Imprensa
IDEALIZAÇÃO: Caio Scot e Junio Duarte
REALIZAÇÃO: Caju Produções



quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Doce pássaro da juventude (RJ)

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Foto: divulgação

Pierre Baitelli e Vera Fischer

Grande elenco em ótima montagem de clássico

“Doce pássaro da juventude” é uma ótima surpresa no teatro carioca no ano de 2017. A peça, escrita entre 1956 e 1959 pelo americano Tennessee Williams (1911-1983), é um clássico do teatro que é pouco montado no Brasil provavelmente pelo tamanho do elenco exigido: no original, são dez homens e seis mulheres. Com excelência, Vera Fischer e Pierre Baitelli protagonizam uma produção com mais oito pessoas no grupo, entre elas, Mario Borges e Ivone Hoffmann com Clara Garcia e Renato Kruger, esses últimos menos famosos que os primeiros mas, como eles, apresentando também belíssimos trabalhos de interpretação. Dirigida por Gilberto Gawronski, a ótima montagem ficou em cartaz entre 5 de outubro e 26 de novembro no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes no centro do Rio, e merece a espera por nova oportunidade de aplaudi-la.

Linda dramaturgia do autor de “Um bonde chamado desejo”
A narrativa se dá nos anos 50 quando a já aposentada estrela de cinema Alexandra del Lago, escondida sob o pseudônimo de Princesa Kosmonópolis, acorda em um hotel na pequena cidade de St. Cloud no centro do Estado da Flórida, no sul dos Estados Unidos. Ela foi levada até lá pelo jovem (e belo) Chance Wayne, de 29 anos, que ela conheceu em Palm Beach alguns dias antes quando ele lhe passava creme de mamão à beira d`água. Ele quer resgatar Celeste, sua antiga namorada da adolescência, e, com a ajuda da grande atriz decadente, conseguir uma “chance” para ambos em Hollywood. Para conseguir o favor, Chance grava a atriz narrando, sob efeito de drogas, detalhes de sua vida privada.

Quando a peça começa, Chance encontra sua cidade natal diferente da que ele abandonou onze anos antes, quando foi para Nova Iorque tentar a vida como ator em musicais. A pequena localidade, que admirava suas enormes beleza e masculinidade, agora parece odiá-lo. Isso porque, em sua última rápida visita, Chance fez algo terrível com Celeste, que desde então está transtornada. O pai dela, Boss Finley, é um dos políticos mais ricos do sul dos Estados Unidos. Com enorme influência, ele lidera o povo em movimentos ultrarreacionários, manifestando posições favoráveis como por exemplo à segregação racial. Ao saber que Chance está na cidade, Finley exige a expulsão imediata do rapaz.

O mais bonito de toda a história é acompanhar as muitas metáforas às quais o dramaturgo se refere para tratar do significado da juventude sobretudo para quem vive o fantasma da velhice. Todos os personagens principais, de alguma maneira, se movimentam pela questão: os cabelos que caem, a beleza que se modifica, o corpo que se transforma, o mundo que é outro. Em nível não menos importante, mas muito mais sutil, está o modo como a Princesa e o “Plebeu” se aproximam. Em um determinado ponto da história, é belíssimo acreditar que a única pessoa no mundo que realmente está ao lado de Chance é Alexandra. A partir dessa percepção, e talvez somente dela, é que se é possível identificar a profundidade desse clássico da dramaturgia neorrealista americano. Por esse viés, sabe-se que à estética não interessa exatamente como é a realidade, mas como ela é vista por determinado ângulo. É nesse sentido que as reflexões dos personagens levantam as paredes que faltam no cenário.

Glauce Rocha e Mauro Mendonça
Em 1959, quando a peça foi lançada, Tennessee Williams já era um escritor muito famoso sobretudo por sucessos como “À margem da vida” (1944), “Um bonde chamado desejo” (1947) e “Gata em teto de zinco quente” (1955), entre várias outras obras menos conhecidas no Brasil. “Doce pássaro da juventude” foi adaptada para a linguagem audiovisual duas vezes. A primeira é de 1962 e tem Paul Newman e Geraldine Page nos papeis de Chance e de Alexandra, e Ed Begley, que ganhou o Oscar do ano por esse trabalho, como Boss Finley. A segunda é de 1989 e tem Mark Harmon e Elizabeth Taylor nos papeis principais. No Brasil, houve duas montagens teatrais conhecidas: uma em 1960 (um ano depois da estreia mundial do texto), dirigida por Ademar Guerra, com Mauro Mendonça e Glauce Rocha (APTC de Melhor Atriz por sua participação); e outra em 1976, dirigida por Carlos Kroeber, com Nuno Leal Maia e Tônia Carrero.

A montagem atual de “Doce pássaro da juventude” se serve bastante bem de uma ótima tradução de Clara Carvalho e de uma boa adaptação de Marcos Daud. Em cena, a obra de Tennessee Williams recebe uma direção aparentemente preocupada em valorizar as palavras, consciente do movimento que os sentidos fazem ao longo das frases que são ditas e confiante do excelente ritmo que trabalhos de interpretação habilidosos são capazes de oferecer. A falta de triangulação que se vê em vários momentos parece ter um motivo bastante óbvio: é uma medida que expressa a solidão dos personagens abandonados em seus próprios pensamentos. Os cortes feitos no texto potencializaram a ação central com vistas a uma fruição mais qualificada em relação às necessidades de hoje, mas também do público brasileiro, que está desobrigado da tarefa de conhecer os meandros da cultura e da história norte-americana. Nesse sentido, pode-se afirmar que não há considerável perda do sentido dentro da proposta original do dramaturgo, essa bastante clara nos textos curtos de que a versão final de 1959 partiu.

Aplausos a Vera Fischer, Mario Borges e, em especial, a Pierre Baitelli
Quanto às atuações, vale dizer de início que Vera Fischer é visivelmente a pessoa perfeita para o papel de Princesa Kosmonópolis. Em primeiro lugar, sua enorme beleza, graças à qual foi Miss Brasil em 1969, fez dela uma atriz bastante requisitada principalmente pelo cinema e pela televisão ao longo das últimas quase cinco décadas. Ou seja, para além de ela ser uma artista, trata-se de uma estrela, de um fenômeno midiático cuja imagem é reconhecida por milhares de pessoas há muito tempo. Em segundo lugar, sua biografia é atravessada por notícias de suas relações com homens mais jovens e contaminada por histórias com o uso de drogas ilícitas. Essas duas questões pertinentes ao significado de sua figura pública no imaginário coletivo fazem muito bem ao papel que ela interpreta relativamente bem agora no teatro. Durante quase toda a sessão, não é difícil cogitar a possibilidade de que as palavras ditas no palco são dela e não de uma versão de Carvalho e de Daud para o original de Tennessee Williams. Considerando a especificidade do signo teatral, esse o único impossível de ser separado do artista que o criou e do momento em que o cria, a experiência estética fica enormemente qualificada.

Aparte os valores que Fischer traz em sua pele à protagonista de “Doce pássaro da juventude”, pode-se destacar positivamente um aparente empenho particular na elaboração de seu discurso cênico. Distribuindo marcas de relativa ingenuidade ao longo da maior parte da encenação, a atriz mantém viva, através da sua personagem, uma tensão que é vital para a fruição da obra. Em outras palavras, espera-se para ver as reações de sua Alexandra del Lago aos impropérios ditos e às maldades feitas por Chance Wayne. E essa torcida em favor dela vai alimentando as negociações entre o público e a narrativa teatralizada, pelo menos, enquanto não se aprofunda o suficiente as idiossincrasias do antagonista. Isso tudo é ótimo. Se algo em contrário pode ser dito, é sobre o péssimo uso da voz pela intérprete que, por vezes, corrompe a beleza no uso dos outros aspectos de sua atuação.

A montagem de Gilberto Gawronski tem ainda ótimos trabalho de interpretação de Renato Krueger, que interpreta com valentia um pequeníssimo personagem e que, por isso, o torna marcante; e de Clara Garcia, que dá corpo à Miss Lucy, a amante de Boss Finley. Com presenças firmes, textos bem ditos e intenções claras, esses dois atores potencializam seus personagens e os fazem ascender na narrativa positivamente. Em duas belas cenas, Ivone Hoffmann inclui afetividade na defesa de sua Tia Nonnie, a única parente de Wayne na história, tornando o contexto menos brutal e mais humano. É uma delícia assisti-la outra vez! De entre os personagens coadjuvantes, a atuação de Mario Borges, como Boss Finley, é nada menos que brilhante. O ator, com excelente uso da voz, mastigando cada sílaba das palavras de Carvalho, de Daud e de Tennessee Williams, alarga o tempo e funda o seu próprio espaço dentro da narrativa. Eis aqui um grande trabalho de interpretação na grade teatral carioca de 2017.

Para além de tudo o que for de mais positivo nesse “Doce pássaro da juventude”, vale dizer que a produção traz à cena fluminense mais uma oportunidade para conferir o talento de Pierre Baitelli, um dos melhores atores de sua geração no contexto nacional. Há que se destacar o modo como seu Chance Wayne vai ganhando contornos cada vez mais profundos, como a alma do personagem vai sendo exposta a cada nova aparição e como a complexidade dela vai se tornando excelente metáfora para o mundo em que vivemos. De um lado, a dúvida cruel entre aproveitar a vida e lutar por ela. De outro, os valores morais, as expectativas sociais, a ética. O Chance de Baitelli surge mergulhado na barafunda desses caminhos por vezes opostos, colhendo frutos por suas escolhas erradas, vivíssimo em cena e no imaginário a partir de tão valoroso trabalho de interpretação. O ator está plenamente entregue e mobiliza enorme repertório de marcas expressivas capaz de dar conta da grandeza de seu protagonista em um dos trabalhos mais elogiáveis da temporada. Aplausos!

Belíssimo figurino de Marcelo Marques
São bastante interessantes as participações dos demais elementos estéticos, como cenário, trilha sonora e figurino por exemplo. Acerca dos dois primeiros, vale dizer que a paisagem assinada por Mina Quental e por Ateliê Glória, assim como inserções musicais criadas originalmente por Alexandre Elias, estimulam a obra a parecer cheirar a velha. Antes que se pense que isso é negativo, elogiem-se os efeitos semânticos da impressão. A St. Cloud ficcional da peça é uma cidade extremamente conservadora, onde os afrodescendentes são considerados, pela cor de sua pele, uma ameaça em potencial aos demais membros da população. Lá, por ter vindo de família humilde, aparentemente Chance Wayne não teria chances de crescer e, assim, seu espírito livre e sua vontade de subir sempre foram vistas com maus olhos mesmo antes do personagem ter se tornado um bad boy. Nesse sentido, é bom que o visual imagético e sonoro remeta a uma estética já ultrapassada. O figurino criado por Marcelo Marques, em especial o último vestido de Vera Fischer, é belíssimo. Destaca-se a aparência dourada dos dois protagonistas na abertura da peça que vai sendo substituída por mais cores ao longo da encenação. O preto e o branco de Celeste têm sentidos opostos ao que se imagina, contrastando os momentos mais e menos tristes da vida da personagem. Eis um elogiável guarda-roupa.

Um ótimo espetáculo
Produzido por Luciano Borges e por Edson Fieschi, com produção executiva de Joana D’Aguiar, “Doce pássaro da juventude” marca a bravura do teatro carioca em, apesar da crise, oferecer ao público uma bastante qualificada oferta. Parabéns!

*

Ficha Técnica
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Clara Carvalho
Adaptação: Marcos Daud
Direção: Gilberto Gawronski
Elenco: Vera Fischer, Pierre Baitelli, Mario Borges, Ivone Hoffmann, Bruno Dubeux,
Clara Garcia, Dennis Pinheiro, Juliana Boller, Pedro Garcia Netto, Renato Krueger.
Cenário: Mina Quental
Figurinos: Marcelo Marques
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha sonora original: Alexandre Elias
Fotos estúdio: Marcelo Faustini
Produção Executiva: Joana D´Aguiar
Produção Geral: Luciano Borges e Edson Fieschi
Realização: Borges & Fieschi Produções Culturais

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Ayrton Senna - O musical (RJ)

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Foto: Caio Gallucci 



Numa das cenas mais aplaudidas, Hugo Bonemer e Ivan Vellame, na frente, em destaque


Direção de Arte de Gringo Cardia é o melhor do novo musical da Aventura Entretenimento

“Ayrton Senna – O musical” é o novo espetáculo da Aventura Entretenimento. A peça, com texto e músicas originais de Claudio Lins e de Cristiano Gualda, tem direção de Renato Rocha e direção de arte de Gringo Cardia, esse último que oferece as melhores experiências estéticas ao espectador durante a sessão. O belo Hugo Bonemer interpreta o personagem título na fase adulta, mas sua história é entrecortada por outra em que Senna aparece mais jovem (João Vitor Silva) e ao lado de um amigo criança (Lucas Vasconcelos). Com diversos problemas na dramaturgia quanto ao modo como essas duas histórias vão se relacionar e também na direção que nem resolve os problemas, nem oferece outros caminhos, o espetáculo depende do aspecto visual. Cardia é quem oferece, através dos cenários, dos recursos circenses, das cores e dos movimentos da direção de arte, o algo para a peça se manter mais ou menos interessante ao longo de quase três horas. Ficam na memória as lindas vozes de Lana Rhodes e de Estrela Blanco também. A produção fica em cartaz até 4 de fevereiro no Teatro Riachuelo, na Cinelândia, centro do Rio. 

Os problemas da dramaturgia 
Mantendo uma infeliz tradição da Aventura Entretenimento, o maior problema de “Ayrton Senna – O musical” é a dramaturgia. E, como em vários musicais antes desse, as justificativas para essa avaliação negativa são facílimas de serem encontradas a olhos nus. O texto não se sustenta: suas forças são fracas e/ou contraditórias fazendo com que sua estrutura caia como castelos de areia, suas motivações nascem fora da peça e permanecem infelizmente aí, sua organização é mal feita embora com alguns momentos positivos de exceção. Para esclarecer esses aspectos – não basta a uma crítica avaliar, mas é preciso justificar a análise! –, inevitavelmente cair-se-ão em spoilers. Por isso, se você não está preparado para eles, pare essa leitura por aqui. Assista à peça e depois seja bem-vindx de volta. 

Para falar sobre como o texto de Cristiano Gualda e de Cláudio Lins se organiza na narrativa, é preciso começar com o fato de ele ser dividido em duas narrativas que vão acontecendo em paralelo. De um lado, na primeira narrativa, há uma justaposição talvez não de todo cronológica de alguns momentos da fase final da vida do corredor Ayrton Senna da Silva (1960-1994). De outro, há uma romancialesca história entre o jovem Beco (Ayrton Senna jovem) e um garoto pobre chamado Wandson. Vamos analisar individualmente as duas narrativas. Elas têm suas próprias forças e não é difícil identificar porque elas são fracas ou contraditórias mesmo quando unidas no todo da peça. 

Uma dramaturgia: duas histórias 
No primeiro lado da história, os momentos surgem desconexos. Com altas doses de lirismo, em uma nítida vontade de destacar as canções – efeito que será tratado mais adiante –, as cenas estão dispostas na narrativa de maneira quase sempre cronológica, mas sem que uma justifique nem a anterior, nem a posterior. Desse modo, há um espalhar de oportunidades ao longo da peça que, por sua natureza, nem bem informam o espectador sobre o que está vendo, nem bem o situam em uma estrutura própria, mas ocupam o tempo. Às vezes, parece que se está diante de uma perspectiva intimista, isto é, por dentro de Senna, por sobre suas sensações interiores a respeito do mundo que ele vê. Em outros trechos, a impressão é de que se acompanham, na mesma proposta, outros personagens. Há ainda cenas em que o ponto de vista não é nem de dentro de Senna, nem de dentro de outro personagem, mas externo: o interesse na descrição do acontecimento histórico. Passam-se anos entre umas cenas, segundos entre outras e tudo, nesse ponto da dramaturgia, parece muito nebuloso. Não há tempo para o espectador da peça identificar a ordem do que lhe é apresentado porque esse lado da narrativa é entremeado por outro sobre o qual vai se falar no parágrafo a seguir. 

No outro lado da história, acontece exatamente o oposto do primeiro: tudo é claro demais a ponto de não parecer viável. Em um dia como outro qualquer, o jovem e rico Beco está preocupado administrando uma loja de materiais de construção (que o seu pai montou pra ele) na zona norte de São Paulo no início dos anos 80. É quando Beco descobre que uns fios enviados a uma danceteria em reforma não estão nos conformes e, portanto, precisam ser trocados a fim de que um incêndio seja evitado sob sua responsabilidade. Na correria desse gesto de extrema e louvável honestidade, aparece um garoto pobre na loja que rouba um vidro de cola de uma das estantes. Beco sai correndo atrás do moleque pelas ruas da capital paulista e os dois esbarram em um Policial. Para defender o ladrãozinho desconhecido, Beco mente que se trata de um primo seu e que ambos estão brincando. O policial, porém, reconhece a farsa e tenta extorquir o jovem herói, mas Beco ameaça o guarda mentindo (de novo) sobre um parente que ele tem na polícia e que poderia ser superior ao guarda. Nasce aí uma repentina e brilhante amizade à primeira vista (que quase cheira à pedofilia) entre Beco e Wandson. 

De início, Wandson diz ao novo e melhor amigo Beco que não foi à escola naquele dia porque lá está acontecendo uma apresentação de pais e, como ele não tem pai, ficou constrangido de ir à aula (e resolveu ir roubar cola em uma loja qualquer). Beco, comovido, resolve sugerir a ideia de ir à escola de Wandson, representando sua família. A apresentação está para começar, então, eles pegam um táxi. Começa a chover e o tempo antes da atividade ter início é muito curto. Por isso, Beco assume a direção do carro e, correndo pelas ruas de São Paulo, se esforça para estar no compromisso de Wandson na hora. Seu esforço é em vão. Quando eles chegam, o portão da escola está fechado e a apresentação já começou. Para o azar da dupla, ao tentar pular o portão estranhamente trancado (embora seja uma escola pública cujos pais e alunos estão em atividade em seu interior), eles são surpreendidos pelo mesmo Policial de antes, que agora já sabe que Beco não tem parente algum na polícia. No entanto, o guarda está feliz, orgulhoso do seu filho (colega de Wandson) que se apresentou, e deixa Beco entrar com seu “primo”. Na apresentação, Beco se dá conta de que não nasceu para ser dono de uma loja de material de construção, mas que gosta mesmo é de correr e que quer ser piloto de corrida. Ao fim do trecho, ele comunica essa decisão ao seu pai, que lhe consegue um patrocínio incrível, garantindo a realização de seu sonho. Beco promete um par de luvas para Wandson, que conta a verdade sobre sua família: seu verdadeiro pai não morreu, mas está preso. Wandson, envaidecido por ter um amigo que será famoso, promete em troca nunca mais faltar à aula. 

Se, em uma das narrativas, há poucos ganchos que unam as cenas entre si, em outra, os ganchos estão unidos com força muito grande. Fica óbvio o interesse enorme da dramaturgia em vender Ayrton Senna da Silva como um herói: em um espaço ficcional de menos de doze horas contíguas, ele quer proteger uma danceteria contra incêndio mesmo que tenha prejuízo, quer salvar um garoto desconhecido mesmo que tenha que mentir para um policial duas vezes; quer correr velozmente pelas ruas da grande cidade pra ajudar esse amigo mesmo que isso ponha a vida de outros transeuntes em perigo. Esses caminhos todos são fracos, pois, ainda que estejam bem unidos na narrativa, no todo do quadro, não fazem sentido. E toda a questão fica um big White People Problem. 

Vamos aos fatos reais. Logo depois de se casar com sua namorada Lílian, em fevereiro de 1981, Ayrton Senna da Silva (1960-1982) tinha ido morar na Inglaterra com sua jovem esposa. Nessa época, ele tinha sido campeão brasileiro, sul-brasileiro e, por duas vezes (1979 e 1980), vice-campeão mundial de kart. Na Inglaterra, tentava entrar no mercado da Fórmula 3 (um nível acima do kart e abaixo da Fórmula 1), sendo financiado pelo pai (o empresário de médio porte Milton da Silva) que lhes oferecia casa, carro e comida para o casal viver por meses na Europa enquanto o garoto de 21 anos vencia corridas. Teve 12 vitórias e 5 segundos lugares em vinte voltas, o que, no esporte, é um enorme mérito. 

A decisão de voltar ao Brasil se deu oito meses depois, antes do inverno inglês começar, em outubro de 1981. Durante quatro meses, período em que supostamente a história ficcional de Beco e de Wandson teria acontecido, Senna esteve de castigo à frente da Anhembi Materiais de Construção Ltda. Em fevereiro de 1982, já separado da esposa, decidiu voltar para a Inglaterra quando, depois ainda de muitas vitórias, um ano depois, fez seu primeiro teste em carro de Fórmula 1. E suas vitórias não pararam de ser acumuladas. Nesse sentido, é inegável o sucesso de Ayrton Senna da Silva como alguém que venceu verdadeiramente suas batalhas como esportista, mas não há aí nada do heroísmo que a dramaturgia de Claudio Lins e de Cristiano Gualda (inspirada e somente existente na ficção global de Galvão Bueno) tenta enfiar “goela abaixo”. 

Uma dramaturgia: duas constantes 
Analisados os modos como cada uma das duas narrativas se organizam internamente no todo, vale observar a relação entre ambas. Há duas constantes: a ordem de entrada de cada história e o comportamento da música nesse ínterim. De maneira repetidamente intercalada (primeiro uma parte, depois outra, depois a primeira, depois outra de novo), o público vai vendo um pouquinho de cada história se desenvolver no quadro. A música é outra constante. O enorme lirismo da primeira narrativa traz músicas que não exatamente estão coladas na história a qual elas pertencem: os últimos momentos de Senna. Se lermos as letras em separado (elas constam no programa da peça), não vamos identificar o trecho ao qual elas se referem no seu conteúdo. Em termos estéticos, isso tem a ver com a primeira virada na história dos musicais com “Show Boat” há exatos noventa anos na Broadway. Tratava-se, na época, de uma medida prática: as músicas cantadas pelos atores nos palcos dos teatros precisavam ser vendidas separadamente no mercado da música que se abastecia com o advento do rádio nos 20 do século XX. O leitmotiv (a frase musical que dá cara para toda a peça), que vinha das óperas de Wagner, entrou em declínio nas composições de musicais até quase desaparecer por completo nos anos 70. Foi o compositor inglês Lloyd Weber (De “O fantasma da ópera”, por exemplo) quem investiu pesado no retorno às composições mais orgânicas sem retirar de todo as letras da chance de fazer sucesso individualmente. Em “Ayrton Senna – O musical”, não há um único leitmotiv (A célebre e esperada frase do “Tema da vitória”, de Eduardo Souto Neto, aparece brevemente no fim do primeiro ato e no fim da peça) e nem um trecho de qualquer uma das muitas músicas realmente se refere aos personagens ou à narrativa de modo inseparável. Ou seja, cria-se um padrão monotonamente repetido ad infinitum: história 1 + música, história 2, história 1 + música sucessivamente (A história 2, a de Beco e de Wandson, só vai ganhar canções no segundo ato.) sem que uma música converse com outra de modo algum. Quando a música dois aparece, já não se se lembra mais qual era a música anterior. 

Por fim, toda a motivação de “Ayrton Senna – O musical” parte do piloto que realmente viveu, mas muito mais ainda da figura midiática da qual o piloto fez parte. E, de uma maneira muito pobre, o texto não só parte desse registro, mas fica nele ao longo de toda a sessão sem qualquer esforço em observar o personagem com alguma complexidade. Em outras palavras, a dramaturgia, que não apresenta bem o protagonista, também não o defende contra o mundo além da ficção. Seu Senna existe a partir da Globo e só permanece existindo dentro daqueles limites e em nenhum outro mais ao longo de duas horas e meia de texto. 

De fato, o piloto Ayrton Senna da Silva caiu nas graças da TV no Brasil e no mundo nos últimos dez anos em que viveu. No caso do nosso país, em 1983, quando Nelson Piquet ganhava o mundial de Fórmula 1, a Globo transmitia, além dessa corrida, também a final da Fórmula 3 (a série B da corrida automobilística) devido ao sucesso que o jovem paulista fazia na telinha. Senna era bonito, educado, tímido, tratava bem os jornalistas, tinha belas namoradas, era rico, branco e bem sucedido. Há quase quinze anos sem nem chegar à final de uma Copa do Mundo, o futebol decrescia e novos ídolos esportivos e outros esportes surgiam. Senna era perfeito nas capas dos jornais e das revistas e ficava ainda melhor nas vibrantes narrações de Galvão Bueno nos domingos pela manhã. Quando ele faleceu, naquele 1o de maio de 1994 (dia do trabalhador!), no Grande Prêmio de San Marino, em Ímola, na Itália, o ocidente fez uma pausa e o Brasil literalmente parou. Durante quinze dias consecutivos pelo menos, toda a programação de rádio e de TV estava voltada para a vida tragicamente encerrada do piloto que morreu em um acidente de trabalho aos 34 anos. Ninguém tinha saúde para explicar ao povo muito bem o plano do então ministro da economia Fernando Henrique Cardoso de fazer com que o valor do dinheiro se modificasse todos os dias. Naquele domingo, 1 URV (Uma uerrevê - Unidade Real de Valor) valia CR$ 1.323,92 (mil, trezentos e vinte e três cruzeiros novos e noventa e dois centavos) e esse valor se modificaria no dia seguinte e no próximo e assim sucessivamente até 1o de julho, quando entrou o Real. Mas isso não tinha importância. 

Uma dramaturgia: nenhum conflito 
Voltando à análise da dramaturgia, vale dizer que, em pelo menos vinte e cinco séculos de pesquisas, se sabe que um herói não se mede por seus valores morais, mas seu heroísmo é testado quando entram em choque seus valores, suas habilidades e um desafio a vencer. Um enorme desafio exige enormes capacidades e altos valores. É no recorte desse combate que se observam os méritos dos lados. Na dramaturgia de “Ayrton Senna – O musical”, há um esforço, primeiro, de dizer o quanto era difícil vencer na Fórmula 1 considerando as qualidades técnicas dos automóveis e das pistas, a política, o comportamento dos adversários. Por outro lado, há esforço também em descrever os altíssimos valores morais de Ayrton Senna da Silva: um cara bonzinho, que gostava da família e ajudava os pobres. O que não há é o encontro desse herói com esse desafio já que eles não são opostos. Pessoas boas e más podem ser corredores, pessoas boas e más podem morrer ou sobreviver nas corridas de Fórmula 1. Pode haver mérito (das equipes) em vencer as corridas, mas não há mérito em sobreviver a elas, porque não há desmérito em morrer nelas. Morrer é uma fatalidade em qualquer ocasião, mesmo quando o esporte que se pratica se pauta por uma disputa de carros a 300km por hora. Nem Senna, nem qualquer outro, morreu porque foi um mal corredor, mas porque houve outros motivos, alguns dos quais inexplicáveis. E a dramaturgia de “Ayrton Senna – O musical”, apoiada nessa falsa oposição entre corrida e heroísmo, afunda sem contar uma boa história. 

Méritos na Direção de arte de Gringo Cardia 
Em cena, é visível que há um discrepância entre a dramaturgia e a direção. Enquanto a primeira narrativa, a dos últimos momentos de Senna, é levada ao palco com zilhões de belíssimos efeitos visuais e a brilhante participação de artistas circenses, a segunda história, a de Beco e de Wandson, surge praticamente apoiada neles mesmos. A opção da direção de Renato Rocha, nesse sentido, colabora para o dasande do ritmo, pois valoriza o enorme lirismo de uma e pesa o já pesado melodrama de outra. 

A sensação de que são duas peças – com uma interrompendo a outra - também acontece no modo como os atores interpretam. Há um jogo de cena muito bem articulado entre Beco e Wandson, o que não acontece entre Senna e seus parceiros. Na primeira narrativa, os personagens parecem estar sozinhos mesmo que em meio a multidões. O feito é muito interessante individualmente, mas corrobora com essa desconversa aparente do todo. 

O melhor aspecto de “Ayrton Senna – O musical”, e aquilo pelo qual realmente vale a pena ir ver o espetáculo, é a Direção de arte e a Cenografia de Gringo Cardia, no que se devem incluir os figurinos de Dudu Bertholini e o visagismo de Anderson Montes, o desenho de luz de Renato Machado, a Criação Sonora de Daniel Castanheira, o Desenho de som de Carlos Esteves, a coreografia de Lavinia Bizzotto e toda a contribuição circense da produção (direção técnica efeitos de voo de Vicent Schonbrodt). Se não há uma boa história para ser contada e nem músicas interessantes que ficam no ouvido da gente, há lindas imagens para se ver. Para se analisar esse feito, podem-se dividir a experiência estética em virtualidade e circo. 

O empenho desse musical em explorar as possíveis contribuições da estética do videogame, da Second Life e do 3D na narrativa é vibrante. Em primeiro lugar, como dito anteriormente, a dramaturgia não sai dos limites muito bem definidos da figura midiática do personagem. Nesse sentido, no imaginário coletivo, Senna é um corredor de Fórmula 1 eternamente entrando naquele carrinho esquisito e dando mil voltas quase todas circulares atrás de outros carros iguais ao dele. Brincar com essa imagem oferece à encenação uma possibilidade de se falar da tragédia - o homem preso ao seu destino - que é muito interessante na arte contemporânea. Em termos de cores e de formas, Cardia usa e abusa de uma estética dos anos 90 que tem voltado com força total nos últimos meses, permitindo ao espetáculo se servir de alguns laços visuais de hoje para falar de ontem. 

O circo, além da beleza, inclui na narrativa o argumento do risco físico. Várias teorias da cena contemporânea se dedicam a observar a participação do risco na construção do campo semântico do espetáculo. Entre elas, estão as que refletem que, quando os homens da plateia veem os homens do palco correr risco de vida, estabelece-se entre eles um acordo intocável que os leva à humanidade de que ambos compartilham. A possibilidade da perda da vida é uma questão muito presente a qualquer corredor de Fórmula 1 e um traço importante a quem ama o esporte. Em “Ayrton Senna – O musical”, durante largas frações de sua apresentação, há homens e mulheres pendurados em cabos aéreos ou em lugares muito altos, ou em círculos livres. Além disso tudo glorificar a beleza do corpo humano, da sua elasticidade, das suas muitas potencialidades de driblar a gravidade e voar, está a tensão de que a vida deles corre risco. E essa sensação é útil para a peça dado o seu tema. Na Direção de arte e no seu entorno, Gringo Cardia apresenta uma excelente colaboração aqui. 

Sem grandes trabalhos de interpretação 
Não há grandes trabalhos de interpretação em “Ayrton Senna – o Musical”. Hugo Bonemer (Airton Senna da Silva), com tons graves, ombros largos e olhar marcante, mais seduz do que realmente apresenta um bom trabalho seja como intérprete das canções ou do texto. Com méritos, João Vitor Silva (Beco) honrosamente se esforça para tornar o seu personagem menos superficial, mas quase nunca ganha batalha tão difícil infelizmente. Lucas Vasconcelos (Wandson) se serve dos benefícios de ter o melhor personagem da dramaturgia e ainda por cima ser uma criança, o que lhe facilita ainda mais a conquista de aplausos. No panorama geral, ele é um dos pontos altos do elenco. 

Como personagens secundários, há artistas honrados como Victor Maia (Engenheiro), Ivan Vellame (Alain Prost), Will Anderson (Policial e Taxista) e Kiko do Valle, entre outros, defendendo bem suas figuras pouco expressivas. Anderson se esforça para oferecer alguma comédia tanto no Policial como no Taxista, o que seria ótimo no marasmo da peça, mas não consegue pelas limitações do texto infelizmente. Além de Vasconcelos, só quem brilha mesmo é Estrela Blanco e Lana Rhodes. Apesar de estarem em personagens completamente dispensáveis e que não lhes oferece muito material para interpretar, as duas apresentam belíssimos trabalhos na defesa das canções, lembrando o público do quanto uma canção bem interpretada faz bem a um musical. São os dois únicos momentos de preciosismo musical para além da mediocridade em “Ayrton Senna – O musical”. 

Bruno Carneiro, Douglas Cantudo, Marcellinton Lima, Marcela Colares, Natasha Jascalevich, Olavo Rocha, Joao Canedo e Juliano Alvarenga elevam as qualidades estéticas do espetáculo por suas excelentes participações como atores-acrobatas. Ao longo de toda a sessão, é a eles que se esperam no oferecimento de novas experiências estéticas que alimentem a vontade de continuar assistindo. E todos, com muita precisão, cumprem bem as expectativas. Excelentes. 

Os maiores méritos da produção 
Quais são os maiores méritos de “Ayrton Senna – O musical”? Em primeiro lugar, existir. Fazer teatro nunca foi fácil, musical menos ainda, mas um espetáculo desse porte diante da crise em que nosso país se encontra é realmente um enorme feito. Depois é a oportunidade para que Gringo Cardia e sua equipe ofereçam obra tão impactante no âmbito de suas formas, cores e potencialidades visuais para o deleite o público carioca. Por fim, conhecer Lucas Vasconcelos e rever Lana Rhodes e Estrela Blanco em ótimas performances. E, ao final, participar de uma vaga celebração da memória de Ayrton Senna cujas vitórias embalaram os domingos de manhã entre o meio dos anos 80 e o meio dos anos 90 do século passado e que, graças à fundação do Instituto Ayrton Senna depois de sua morte, conseguiu ajudar milhares de crianças no nosso dolorido país. Essas coisas fazem o espetáculo valer a pena de ser visto. 


Ficha técnica: 
Texto e Músicas Originais: Claudio Lins e Cristiano Gualda 
Direção: Renato Rocha 
Direção musical e Arranjos: Felipe Habib 
Desenho de Luz: Renato Machado 
Direção de arte e Cenografia: Gringo Cardia 
Figurino: Dudu Bertholini 
Criação sonora: Daniel Castanheira 
Coreografia: Lavínia Bizzotto 
Desenho de som: Carlos Esteves 
Assistente de direção: Pedro Rothe 
Coordenação geral de produção: Bianca Caruso 
Preparação vocal: Aurora Dias 
Direção executiva: Luiz Calainho 
Direção artística e Supervisão de produção: Aniela Jordan 
Marketing e Negócios: Fernando Campos 
Direção financeira e Leis de incentivo: Patrícia Telles: 
Produção: Aventura Entretenimento 

Elenco: 
Hugo Bonemer – Ayrton Senna da Silva 
Vitor Maia - Engenheiro 
João Vitor Silva – Beco 
Lucas Vasconcelos / Pepê Santos – Wandson 


Kiko do Valle, Lana Rhodes, Laura Braga, Leonardo Senna, Adam Lee, Bruno Carneiro, Douglas Cantudo, Estrela Blanco, Marcelinton Lima, Marcella Collares, Natasha Jascalevich, Olavo Rocha, Ivan Vellame, João Canedo, Juliano Alvarenga, Karine Barros, Paula Raia, Will Anderson, Gabriel Demartine, Norrana Hadassa / Pedro Valério Lopez.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Boca do Inferno (RJ)

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Foto: Igor Motta e Rita Aragão


Gilson de Barros e Licurgo


Ótima peça sobre um dos maiores poetas da história do Brasil

“Boca do Inferno” é um ótimo espetáculo teatral a partir de texto original de Adailton Medeiros sobre o poeta baiano Gregório de Matos Guerra (1636-1696). Considerado o primeiro poeta brasileiro, ele é uma figura muito interessante na história do Brasil pelo modo como, através de seus textos, podemos chegar a um panorama do século XVII, em pleno período colonial. A peça, com belíssimas atuações de Andréa Mattar e de Licurgo, mas principalmente de Gilson de Barros, ficou em cartaz no Parque das Ruínas, em Santa Teresa, durante os meses de setembro e de outubro de 2017, mas voltará à grade programação carioca em janeiro de 2018 no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon. Vale a pena esperar para ver!

Excelente dramaturgia de Adailton Medeiros
Em termos de dramaturgia, o melhor de “Boca do Inferno” é reparar como o texto não se deixa vencer pela força da poesia de Gregório de Matos. O personagem se mantém, ao longo de toda a narrativa, vivo em seus dilemas, em suas certezas, em suas paixões e contradições. Adailton Medeiros, que escreveu a peça há quinze anos, permite que alguns textos do poeta entrem em cena, bem como encara de frente a organização de sua biografia, mas o personagem título, em nenhum momento, vira objeto de uma homenagem superficial como tantas e incontáveis vezes o teatro fluminense tem visto por aí com outras pessoas. É uma dramaturgia muito bem escrita.

Gregório de Matos Guerra era filho de ricos portugueses radicados no Brasil e nasceu em uma época em que, pela união das coroas de Portugal e de Espanha, era regido pelo Rei Felipe IV de Castela, o monarca então mais poderoso do mundo. Depois de uma primeira formação na colônia, Guerra foi para Lisboa e depois Coimbra, onde se formou em Direito e entrou em contato com a gloriosa literatura do Século de Ouro Espanhol: Miguel de Cervantes (1547-1616), Góngora (1561-1627), Lope de Vega (1562-1635), Quevedo (1580-1645), Calderón de la Barca (1600-1681), Gracián (1601-1658), entre muitos outros. Nas questões estéticas, o grupo publicamente guerreava entre si. Uns defendiam os versos mais livres, o apego ao popular, temas políticos ou de ordem mais humana. Outros, flertando com o classicismo francês, cobravam mais rigidez formal e maior apuro nas escolhas das palavras e dos assuntos. Matos se situava no primeiro grupo.

De volta à Bahia, em 1679, serviu como desembargador e tesoureiro mor da sé católica. A colônia não era muito diferente do que hoje no modo como se dão as relações sociais. Indígenas catequizados pelos jesuítas de um lado, indígenas “selvagens” de outro; negros escravos aqui, negros quilombolas acolá; um pequeno grupo de portugueses muito ricos donos de grandes extensões de terra versus portugueses e luso-brasileiros pobres. Em todo o canto, guerras entre facções com cada povo tentando se impor sobre o outro na posse das terras e na conquista e manutenção do poder. Gregório de Matos Guerra, como qualquer europeu do século XVII, frequentemente se via confuso sobre o que pensar de tudo isso. Para muitos, negros e índios não eram considerados seres humanos. Para outros vários, eram humanos menores. Para quase ninguém, eram seres humanos iguais a qualquer um. As divisões religiosas também rachavam o contato entre as pessoas. Na Idade Moderna (1453-1789), a limpeza de sangue era uma questão importantíssima, pois não bastava ser católico, mas era preciso, para ascender socialmente, provar que, atrás de si, não havia nenhum antepassado nem judeu, nem muçulmano. Os “cristãos velhos”, como a família Matos Guerra, estavam no topo máximo da pirâmide.

Na dramaturgia de “Boca de Inferno”, todo esse universo complexo aparece. Nesse sentido, em vários momentos, o público se vê diante de um protagonista cheio de preconceitos raciais, religiosos, de gênero e de orientação sexual que, longe de tornar o personagem menos delicioso, o tornam vivo como um homem que viveu o seu tempo. A partir do seu lugar privilegiado, encontrar em sua obra tantos textos extremamente ácidos e em sua vida tanto comportamento rebelde é o que justifica sua importância trezentos anos depois para além da beleza de sua poesia. Por isso, eis aqui uma dramaturgia muito bem vinda pela oportunidade que ela oferece à audiência de se encontrar com o homem e com o seu mundo na profundidade de ambos.

Vale citar o horroroso filme “Gregório de Mattos”, de 2002, dirigido por Ana Carolina, e celebrar que a peça “Boca do Inferno” não tem nada a ver com aquilo felizmente.

Gilson de Barros se destaca em elenco com ótimas atuações
A direção de Licurgo do espetáculo que ele próprio protagoniza é também muito boa. Em cena, há diversos personagens: três deles ganham corpo pelos atores – Gregório (Licurgo), o amigo Chico (Gilson de Barros) e a amásia Ana (Andréa Mattar) – e os outros todos são mencionados - políticos, familiares, religiosos, amigos e inimigos de Gregório. Toda essa gente participa ativamente da narrativa, sendo capaz de modificar os percursos dela, apenas comentá-los ou lutar para mantê-los. Os diálogos surgem pontuais, as cenas são rápidas, cada situação é bem aproveitada de maneira que consegue o público visualizar a cidade de Salvador da segunda metade do século XVII como também alguns meandros de sua cultura.

O mais interessante na encenação é descobrir como as poesias do personagem-título surgem nas cenas e também identificar a maneira como Chico e Ana, figuras secundárias, alçam lugares de grande importância. Quanto ao primeiro, o preciosismo da poesia barroca vem com toda a sua pompa ao espetáculo mas ele não dispensa delas o tom popular e cotidiano que tinham. Sobre o segundo, Chico e Ana garantem o direito do público de participar da história, reagindo diante da personalidade intempestiva do poeta. Se não conseguimos nos identificar com o homenageado, não é muito difícil ficar longe daqueles que estão ao seu lado. E isso é muito bonito.

Andréa Mattar
O conjunto de interpretações apresenta trabalho muitos méritos. Andréa Mattar defende sua Ana com bastante força, tornando-se uma presença muito significativa sobretudo nos momentos finais da narrativa quando alcança enfim algum protagonismo. Há nela um excelente uso do corpo e um tom interpretativo capaz de emocionar, o que eleva os valores estéticos do espetáculo como um todo. Licurgo dosa com pontualidade as várias energias do personagem título, vencendo o desafio da poesia e oferecendo um aspecto humano ao seu Gregório que é vibrante. A figura não se serve comodamente de um carisma natural do escritor, mas o ator o apresenta e o defende na peça para o deleite do público através de uma dicção perfeita, de intenções muito claras e de um gestual comedido e honesto.

No entanto, do trio, quem mais se destaca é Gilson de Barros, dando vida a Chico, o amigo de Gregório de Matos. Durante toda a encenação, com enorme carisma, o personagem se desenha na cena de uma maneira muito doce. Melhor do que isso, diferente de Ana, é um personagem sem curva e, portanto, com muito mais desafios ao intérprete. A maneira como Barros levanta o ritmo da encenação em todas as suas participações, catalisando os signos em volta de si, faz ver seus méritos. Há nele excelente uso do corpo, mas também da voz e um empenho elogiável em conferir verdade a uma figura que é quase dispensável. Aplausos!

Ótimo espetáculo!
Em “Boca do inferno”, há modesta, mas boa participação dos belos figurinos de Janaína Wendling (a partir de acervo da figurinista Carol Lobato) bem como da luz e do cenário de Paulo Denizot. Todas essas colaborações parecem reforçar o trabalho da dramaturgia, da direção e das interpretações, confiando nelas e na sua capacidade de protagonismo na produção. O resultado é bastante positivo: tem-se uma peça simples, mas que atinge o público de maneira especial.

Eis um ótimo espetáculo sobre a vida e com a obra de um dos maiores poetas da história do Brasil!


FICHA TÉCNICA
Texto: Adailton Medeiros
Direção : Licurgo
Elenco: Licurgo, Gilson de Barros e Andréa Mattar
Direção de Movimento: Virgínia Maria
Figurinos: Janaína Wendling
Acervo: Carol Lobato
Iluminação: Paulo Denizot
Cenário: Paulo Denizot
Operador de Luz: Denilson Batalha
Programação Visual: Guilherme Rocha
Visagismo: Diego Nardes
Assistente de Visagismo: Lucas Souza
Fotos: Lucas Souza
Assessoria de Imprensa: Júlio Luz
Produção: Adriana Lemos e Fernanda Nicolis