sexta-feira, 14 de julho de 2017

Estudo sobre a maldade (RJ)

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Foto: Diogo Monteiro

Bruce de Araújo
"Otelo" no bom monólogo de Bruce de Araújo

“Estudo sobre a maldade” é um bom monólogo de Bruce de Araújo em que se investiga as dimensões da maldade na alma humana, tendo, como ponto de partida, a tragédia “Otelo, o mouro de Veneza”, de William Shakespeare (1564-1616). Com criação, dramaturgia e direção assinadas por Miwa Yanagizawa e por Araújo, a peça tem boas intenções, mas fica distante do máximo de suas potencialidades. Sua primeira temporada no Centro Cultural Municipal Sérgio Porto, no Humaitá, terminou na última segunda-feira, 10 de julho, mas deseja-se que ganhe novas oportunidades.

Problemas de coesão e de coerência na estrutura dramatúrgica
A dramaturgia do monólogo “Estudo sobre a maldade” é dividida em duas grandes partes. Na primeira delas, há um recuperar da narrativa de “Otelo, o mouro de Veneza”, peça escrita por Shakespeare entre 1603 e 1604. Na segunda, há uma colagem de inúmeros casos contemporâneos que, de algum modo, servem para refletir sobre a maldade nos dias de hoje. A apresentação das partes individualmente tem muitos méritos, mas há uma questão negativa a refletir: o uso da primeira parte quase que somente para legitimar a segunda.

A principal fonte para Shakespeare ter escrito seu “Othello” é “Desdêmona e o mouro”, a sétima novela do terceiro capítulo de “Gli Hecatommithi”. Escrita pelo italiano Giovanni Battista Giraldi (1504-1573), o Cinthio, e publicada em 1565, trata-se de uma coletânea de cem lendas ancestrais da península itálica cujas traduções francesas faziam sucesso na Inglaterra do fim do século XVI e início do XVII. Shakespeare deu nome aos personagens (Cinthio apenas nomeou Desdêmona) e criou outros (como Rodrigo e Brabâncio, por exemplo), mas manteve a estrutura original da narrativa. Os nomes “Otelo” e “Iago” jamais haviam sido utilizado na literatura antes de 1604, mas supõe-se que o primeiro tenha sido inspirado em Otho, nome do meio do imperador romano Marcus Salvius Otho Caesar Augustus (32-69 d.C.). E o segundo, Jago (ou Tiago), é uma derivação de James I (1566-1625), nome do sucessor de Elizabeth I (1533-1603) no trono inglês.

A história de Otho foi narrada por Plutarco (45 – 120 d.C.) e traduzida por Thomas North para o inglês na época elisabetana, livro que também serviu de inspiração para Shakespeare escrever as peças “Júlio César” (1599) e depois “Coriolano” (1608) e “Antônio e Cleópatra” (1609). Otho era um nobre romano casado com uma mulher muito bonita chamada Popeia Sabina (30-65 d.C.), que chamou a atenção do imperador Nero (37-68 d.C.). Apaixonado, Nero providenciou o divórcio e casou-se em segundas núpcias com Popeia, enviando Otho como governador da Lusitânia (hoje Portugal). Em 69, o trono romano foi tomado por Galba (3-69 d.C.), governador na Hispânia Tarraconense (hoje Espanha), já em idade avançada. Otto, cujos gestos afetados lembravam os de Nero, foi escolhido como sucessor. Depois da morte de Galba, Otto reinou por três meses e, para evitar uma guerra civil, se suicidou. Ele tinha 38 anos, mesma idade com que o rei inglês James I tinha em 1o de novembro de 1604, quando “Othello” foi apresentada pela primeira vez no Palácio de Whitehall, em Londres.

Embora muito conhecida como uma peça sobre ciúmes, “Otelo, o mouro de Veneza” precisa ser lida como uma crítica de Shakespeare ao código da honra vivenciado em sua sociedade e no seu tempo. É isso, mais do que qualquer outra coisa, que lhe oferece uma interpretação como tragédia. Como bem pontua Bruce de Araujo e Miwa Yanagizawa em “Estudo sobre a maldade”, o personagem título é a grande vítima da história.

A peça, que se passa em 1570, começa quando, ao amigo Rodrigo, o enfurecido Iago conta que o general Otelo preferiu escolher Cássio como tenente em seu lugar. Iago, o alferes, quer se vingar do seu superior e, para isso, elabora uma trama diabólica, aproveitando um segredo de Otelo que, por essa ocasião, vem a público. Às escondidas, o general havia se casado com Desdêmona, filha do senador Brabâncio, homem político que, se valorizava o militar como comandante do exército veneziano, jamais o aceitaria como genro. Rodrigo colabora com a vingança de Iago, porque alimenta esperanças de, anulado o casamento não-permitido, possa ele se unir à filha de Brabâncio. Na iminência da invasão turca à Ilha de Chipre, Otelo é enviado como comandante das tropas de defesa e Desdêmona, sua fiel esposa, anuncia ao pai que não abandonará o marido. O casal parte sob a acusação de Brabâncio de que sua filha foi enredada por meio de feitiçaria e sob o alerta de que, assim como Desdêmona traiu a confiança paterna, poderá ela um dia também trair o cônjuge mouro.

A palavra “mouro” necessita de uma observação. Se, hoje em dia, ela se refere a muçulmano árabe, na era jacobina, sua conotação era bastante diferente. Com um tom extremamente pejorativo e preconceituoso, ela queria dizer negro, selvagem e não-cristão. Ao chamar o seu protagonista de “mouro”, Shakespeare começa “Otelo” jogando com os preconceitos do público: como poderia um mouro (como o terrível Aarão, personagem de “Titus Andrônicos”, de 1594) ser um homem respeitado e bom? Nesse sentido, quando a história começa, o público de Shakespeare estava claramente ao lado de Iago e de Brabâncio, de quem lhes foram tirados respectivamente o cargo merecido e a filha.

Em Veneza, uma tempestade faz a armada turca se dispersar (em uma alusão de Shakespeare à derrota da Invencível Armada Espanhola, de 1588, talvez o mais importante acontecimento da história europeia desde a descoberta das Américas cem anos antes). Para comemorar a vitória, Otelo nomeia Cássio como protetor da cidade, mas Iago o embriaga e faz o fracasso do tenente chegar ao conhecimento do general, que o rebaixa a soldado por isso. Cássio, querendo se salvar, procura a intercessão de Desdêmona, que ingenuamente defende o antigo tenente. Iago aí incita a dúvida de Otelo sobre a fidelidade da esposa em relação a Cássio. Um lenço dado de presente por Otelo à Desdêmona é plantado por Iago no quarto de Cássio que, sem saber a origem do objeto, o oferta à Bianca, sua verdadeira amada. O pano, cujo paradeiro é desconhecido por Desdêmona, se torna a prova para Otelo de sua traição. O general mata a esposa, mas ao descobrir a verdade dos fatos, se suicida arrependido. Cássio, enfim, condena Iago à morte.

O uxoricídio (o assassinato de uma esposa por seu marido) é tema muito recorrente nas peças entre os séculos XVI e XVII. Na literatura dramática, talvez o caso mais importante seja o de “El médico de su honra”, de 1635, escrita pelo espanhol Calderón de La Barca (1600-1680). O aspecto trágico se via na “rua sem saída” onde o marido se encontrava diante da (ainda que suposta) traição da esposa. No caso de um general de ascendência africana (ou pelo menos com a pele mais morena que a dos demais) como Otelo, o perigo de uma mancha na honra como a traição de uma esposa (cujo casamento não foi autorizado pelo pai) era ainda maior. É nesse sentido que Otelo é vítima não apenas de Iago, mas de um conjunto de valores que Shakespeare denuncia na trama.

Miwa Yanagizawa e Bruce de Araújo oferecem, em “Estudo sobre a maldade”, uma leitura muito coerente da estrutura narrativa de “Otelo, o mouro de Veneza”, propondo uma revisão da história para isso. No entanto, a trama shakespeareana, abrindo e fechando a nova dramaturgia, embala aquilo que parece tentar sem sucesso ser o mais importante da proposta: uma investigação sobre a maldade. Em outras palavras, é como se a tragédia clássica, servindo apenas para legitimar as citações contemporâneas, só estivesse ali para dizer: “Vejam como a maldade é um tema interessante!” Isso nos faz pensar que, se a dupla de dramaturgos realmente achasse o tema interessante e também o modo como ele é tratado no elenco de histórias contemporâneas que eles trazem, talvez a opinião do bardo nem seria necessária.

Ao longo de toda a segunda parte da dramaturgia de “Estudo”, o texto faz um esforço enorme para unir pequenos quadros de hoje aos feitos de Iago em “Otelo”. Isso nem sempre dá o melhor resultado por um motivo simples: o vilão shakespereano tem suas terríveis ações justificadas - trata-se de uma vingança dele por ter sido preterido na ascensão militar. Já as histórias trazidas por Yanagizawa e Araújo talvez sejam ainda mais saborosas (e terríveis) por não ter qualquer justificativa plausível, mas serem apenas motivadas por um caráter malvado. Nesse sentido, ao perceber incoerências e faltas de coesão na estrutura dramatúrgica, o espectador se vê diante de uma fruição prejudicada, o que impede a peça de chegar ao máximo de suas potencialidades.

Valores positivos da encenação
Na direção dele e de Miwa Yanagizawa, Araujo traz benefícios à montagem optando por uma encenação econômica e que valoriza a prosódia. Toda a primeira parte de “Estudo sobre a maldade” é tomada pelo ator sentado em um cadeira e sob a luz de um refletor, trazendo sua leitura de “Otelo”. O feito dá força para a narrativa shakespereana e oferece à fruição um acordo humano sensível, pautado na atenção mútua e no esforço coletivo que celebra o encontro entre palco e plateia. Na segunda parte, com mais movimentos e ações, a direção se afina à dramaturgia diferenciada desse trecho, sublinhando a atualidade dos quadros trazidos e o ritmo mais dinâmico de suas microestruturas. Pedro Yudi assina a assistência de direção e Laura Samy a direção de movimento. Vale destacar com elogios, o repertório corporal do intérprete em termos de suas expressões que flexibiliza e promove leituras múltiplas e, por isso, mais complexas, da proposta apresentada.

“Estudo sobre a maldade”, com colaborações discretas, mas pontuais e assertivas da luz de Bernardo Lorga e da trilha sonora de Zé Azul, de Joyce Santiago e de Araújo, resulta em um bom monólogo no todo de suas qualidades e melhor ainda em suas intenções. É preciso sempre estar atento à maldade para combatê-la quando em nós e perdoá-la quando nos outros. Aplausos!

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FICHA TÉCNICA
Ator: Bruce de Araujo
Criação, direção e texto: Bruce de Araujo e Miwa Yanagizawa
Diretor assistente : Pedro Yudi
Iluminação: Bernardo Lorga
Direção de Movimento: Laura Samy
Figurino e Cenário: Miwa Yanagizawa, Bruce de Araujo e Pedro Yudi
Trilha Sonora: Zé Azul, Joyce Santiago e Bruce de Araujo
Projeto Gráfico: Diogo Monteiro
Produção: Felipe Pedrini

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