sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Apocalipse naquela esquina Ou A corrosão do caráter (RJ)

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Foto: divulgação


Carolina Ferman



Ótimo espetáculo da Outra Cia. de Teatro

“Apocalipse naquela esquina Ou A corrosão do caráter”, escrito e dirigido por Gustavo Damasceno, é o segundo espetáculo da Outra Cia. de Teatro que cumpriu, entre junho e julho de 2017, sua terceira temporada no Rio de Janeiro. A peça estreou em outubro de 2016 e, na mais recente versão, tinha, em destaque, Carolina Ferman e Nara Parolini ao lado de Gabriel Garcia, João Lucas Romero e de Pedro Casarin, com participações especiais de Antônio Fischer-Band, Ricardo Loureiro, Vitor Barros e de Júlia Limp. Com um argumento que questiona a alienação e que impede os sujeitos de assumirem uma posição mais ativa no percurso de suas histórias, a peça se organiza por um justapor de belos quadros cuja articulação exige do público responsabilidade. Vale a pena aguardar pela próxima oportunidade de assistir à montagem tão digna de aplausos.

Revelações na ótima dramaturgia
A ótima dramaturgia, assinada por Gustavo Damasceno com colaboração de Matheus Tiburi, é estruturada em quadros que se articulam de modo mais ou menos claro. Em alguns, se vê uma certa continuidade; em outros, ela é menos aparente ou talvez inexistente. Cada um deles, pelo jeito como se organiza na cena e sobretudo como se dão a ver os diálogos, surge como uma revelação. Apocalipse quer dizer revelação. Para nós, a referência mais óbvia é a do último livro da Bíblia, aquele escrito por João (provavelmente o apóstolo mais jovem) às igrejas asiáticas em (ou sobre) seu exílio na ilha grega de Patmos no fim do século I. Toda coberta de profecias, é a obra mais enigmática do cânone e acredita-se que foi composta assim como maneira de burlar a censura romana através da qual os manuscritos viajavam.

“Apocalipse naquela esquina Ou A corrosão do caráter” abre e fecha com um amanhecer. No primeiro, uma Advogada (Carolina Ferman) está saindo solitária e bêbada de uma festa. Ela trava um diálogo com um valete, pedindo a ele um isqueiro enquanto exige que ele lhe traga seu BMW. Nas falas, está expresso um posicionamento de mundo conservador ultrarreacionário em que as pessoas são divididas a partir de seus méritos entre classe dominante e dominada. Apesar dos alertas do manobrista, ela pega a direção e acaba atropelando um esportista (Pedro Casarin), que, antes de falecer, lhe revela que sua morte já havia sido anunciada e que está tudo bem. A ausência de sentido para a vida é um desconforto para alguém cujos valores estão pautados em um sistema tão organizado como a Advogada.

Na sequência, a Advogada chega em sua casa e encontra Lourdes (Nara Parolini), babá de seu filho, com uma arma na mão. Entre várias revelações, a funcionária descreve à patroa aspectos do comportamento do menino que a mãe desconhecia. A dramaturgia passa então a privilegiar o garoto, chamado Vitor, alguém a quem a felicidade parece ser uma ilusão que de fato nunca se realiza em qualquer pessoa incluindo ele próprio. Nesse sentido, em uma visão pessimista do mundo, a felicidade (ou talvez a alegria), por apaziguar opostos irreconciliáveis e por conformar vítimas aos seus algozes, traz corrosão ao espírito rebelde e, assim, a continuidade do mal na visão da dramaturgia. No livro do Apocalipse, Jesus é alegoricamente chamado de ladrão por ser capaz de lutar contra dragões, bestas e falsos profetas. Na peça, o pequeno herói Vitor (Casarin) esfaqueia um homem (João Lucas Romero) cuja alegria disfarça seu comportamento pedófilo. Entre ambos, está uma exortação. O profeta convocava os apóstatas à conversão, o dramaturgo à luta contra a alienação.

As cenas do terço final abandonam a narrativa do personagem Vitor, dissertando ainda sobre as questões que ela circunda. Um guardador de carros (Gabriel Garcia) (que o espectador imediatamente associa àquele que apareceu na primeira cena) chega em casa do trabalho no dia em que comemora o aniversário. Ele é recebido pela velha mãe, que destila sobre ele uma série de impropérios através dos quais se percebe todo o ódio dela por ele. O pai do aniversariante - até então desaparecido - aparece para salvá-lo, alertando o filho sobre a presença dos “controladores”: seres que, por meio da televisão e do wifi, admoestam as mentes. A peça termina após essa cena com um caleidoscópio de imagens sob refletores amplamente acesos como em um amanhecer e ao som de um poema de alguém que se lamenta por não conseguir ser tão facilmente fascinado como os homens felizes a sua volta.

Carolina Ferman e a trilha sonora de Pedro Leal David são destaques
Difícil – e um tanto quanto inútil – separar dramaturgia das músicas que fazem parte do texto original de Gustavo Damasceno. A peça começa ao som de “Girls just wanna fun” e avança por uma versão em espanhol de “Time after time”, ambas de Cindy Lauper. Há ainda a versão em português de “Friend, I’m here”, do filme “Toy Story”. E desemboca em uma belíssima interpretação de “All apologies”, do Nirvana, na lindíssima voz de Julia Limp. No meio disso tudo, há um número de acrobacia por Vitor Barros e Ricardo Loureiro ao som da “Valsa das Flores”, de Tchaikovski, e uma cena de assassinato sob a valsa “Danúbio Azul”, de Strauss. Esse mix, que cheira à “Laranja Mecânica”- filme de 1971 de Stanley Kubrick –, melhora o tom irônico dos diálogos, deixando o texto mais positivamente ácido. A trilha sonora original é assinada por Pedro Leal David.

Outro mérito do espetáculo é o modo como ele se estabelece no espaço cênico. Com poucos elementos, mas com vibrante uso da luz por Renato Machado, os quadros fazem, do limite entre o que é iluminado e aquilo que permanece no infinito da escuridão, um motivo de se impor na ironia teatral e assim dizer suas verdades com maior liberdade, mas ainda sim com muita força. Em outras palavras, a ambiência proposta por Claudiney Barino e por Paulo Denizot assume suas limitações ao mesmo tempo que aposta nelas, desprendendo-se de compromissos com a ilustração e defendendo a realidade do imaginário como talvez mais real do que o próprio real. Efeito similar oferece à montagem o figurino de Nara Parolini, esse com melhores consequências no visagismo de Carolina Ferman na abertura da peça.

Os trabalhos de interpretação de Carolina Ferman, Gabriel Garcia, João Lucas Romero, Nara Parolini e de Pedro Casarin são bastante positivos, mas o de Ferman e o de Parolini, como forças iniciais que impulsionam o espetáculo, têm altíssimo destaque. No conjunto, o elenco usa os tempos de maneira bastante perspicaz, gerando quebras em cada intervalo capazes de modificar a tensão e de manter o interesse. Em todas as oportunidades, veem-se com facilidade corpos disponíveis, construções interessantes, registros vocais claros e, em especial, propostas de jogo que aprofundam as sugestões e as desenvolvem em profundidade.

Interferência afiada no dia a dia
Leva-se para casa a tarefa de dar sentido – e sobretudo de responsabilizar-se por ele – de tudo aquilo que está nos meandros dos quadros parcialmente descritos acima. Cheios de potência, essas imagens e também o que as relaciona entre si no espetáculo acendem (ou revelam) reflexões que podem intervir no dia a dia da plateia de maneira inteligente, afiada e, no melhor sentido da palavra, bela. Quando possível vale a pena assistir a mais esse ótimo trabalho da Outra Cia de Teatro.

*

Ficha Técnica:
Elenco: Carolina Ferman, Gabriel Garcia, João Lucas Romero, Nara Parolini, Pedro Casarin
Participação especial: Ricardo Loureiro e Vitor Barros
Autoria e Direção: Gustavo Damasceno
Colaboração Dramatúrgica: Matheus Tiburi
Músico e Trilha Sonora Original: Pedro Leal David
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Claudiney Barino e Paulo Denizot
Figurino: Nara Parolini
Assistência de Direção: Julia Limp
Produção e realização: Outra Cia

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