terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O Jornal – The Rolling Stone (RJ)

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Foto: divulgação


Marcos Guian e Danilo Ferreira

Uma peça essencial

A excelente “O Jornal – The Rolling Stone” é a mais nova peça com a assinatura Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas em cartaz no Rio de Janeiro. Com texto do jovem inglês Chris Urch, ela narra uma dolorosa história de amor entre dois jovens condenados por serem homossexuais em uma sociedade conservadora. O drama, que de modo brilhante oferece pauta para discussões sobre preconceito racial, fundamentalismo religioso, colonialismo e machismo, está situado na contemporaneidade e tem seu lugar em Uganda, no centro leste africano. Trata-se de uma abordagem comovente que, para além dos seus méritos sociais, vale a pena de ser vista pelo brilhantismo da direção, das interpretações e do modo como se articulam todos os seus outros aspectos. É uma dos melhores espetáculos teatrais de 2017 na capital fluminense, ficando em cartaz até o fim do próximo mês de fevereiro no Teatro Poeira, em Botafogo.

Uma história que precisa ser contada
Em uma pequena comunidade religiosa anglicana, os irmãos Joe, Dembe e Wummie começam a reorganizar suas vidas depois do recente falecimento de seu pai, que lhes deixou uma vida financeira apertada. O quadro tem chances de melhorar a partir da influência política de Mama, uma vizinha do trio, que é tida como uma das pessoas mais respeitadas na congregação local. É graças a ela que Joe, o mais velho, ascende ao posto de Pastor. Ela acredita que a juventude de Joe, em meio a experiência de líderes religiosos de idade muito avançada, poderá representar arma eficaz contra as transgressões morais das novas gerações. Nessa luta ultraconservadora de valores considerados “santos”, um pequeno jornal comunitário passa a publicar nomes e fotos de pessoas que devem ser castigadas por seus atos "antibíblicos". Entre os condenados, está um amigo de infância de Dembe, que acaba sendo morto por seus vizinhos pelo exercício de sua homossexualidade.

Se assusta Dembe, a morte horrível de um amigo de infância não o impede de, em segredo, manter encontros íntimos com Sam, um jovem médico nascido na Irlanda do Norte, mas cuja mãe é ugandesa como o namorado. A princípio, nem um nem outro percebem a seriedade do contexto, mas pouco a pouco os atos cada vez mais violentos em prol de uma “limpeza religiosa” parecem se tornar gradativamente mais aceitos na comunidade e, por isso, mais perigosos para o casal. A Sam e principalmente a Dembe, caberão enfrentar os desafios juntos ou separados.

A dramaturgia ficcional de “O Jornal – The Rolling Stone” (“The Rolling Stone”) se refere a um pequeno jornal de uma localidade de Kampala, a capital de Uganda, que funcionou entre agosto e novembro de 2010. A publicação, assinada por três jovens universitários da Universidade Federal de Makerere, publicou nomes e fotos de centenas de homossexuais, exortando para que fossem linchados em uma ode ao preconceito. No país, onde praticamente nem luz elétrica tem, a prática da homossexualidade é considerada criminosa, estando o homossexual sujeito à prisão perpétua se for pego em flagrante a partir de lei federal de 2014. (Antes, estava-se sujeito à pena de morte.) O ativista David Kato (1964-2011) foi uma das cem pessoas listadas em outubro de 2010 pelo “The Rolling Stone”. Não há exatamente ligação direta entre a denúncia e o assassinato, e explora-se o fato de que o assassino Sidney Nsubuga Enoch, hoje condenado a trabalhos forçados, era um garoto de programa que não foi pago pela prestação de serviços sexuais. No entanto, desde o ponto de vista do Brasil, sabemos que homofobia e fundamentalismo religioso são males que andam de mão dadas, sim.

A bíblia, uma coleção de livros milenares que reúne quase a maior parte da humanidade em torno de um conjunto de valores culturais, foi durante muito tempo e ainda é em alguns países o único padrão legal para as normas civis. Uganda é um exemplo desses países. No livro, em toda a sua enorme extensão, há apenas três versículos diretamente relacionados à prática da homossexualidade. No Antigo Testamento (seguido por judeus, muçulmanos e cristãos), em Levítico (Lv 18,22), consta que é abominável um homem deitar-se com outro como se fosse mulher. No Novo Testamento (seguido somente pelos cristãos), na carta de São Paulo aos Romanos (Rm 1, 26-27), em uma lista de sinais de que o homem mergulhou na escuridão contra Deus, o autor cita entre eles o abandono do homem “do uso natural” da mulher, apaixonando-se por outro homem e fazendo entre si “coisas vergonhosas”. E, na primeira carta do mesmo São Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 9-10), entre uma lista de pessoas que não herdarão o Reino de Deus, consta os efeminados. Deixando de lado todas as inúmeras questões da ordem da tradução de um livro que se arrastou copiado a mão por entre quatorze e dezessete séculos até ser impresso pela primeira vez, e, a partir daí, traduzido novamente outras incontáveis vezes para idiomas muito diferentes ao redor do mundo; e, deixando de lado também que apenas três versículos, em um universo de aproximadamente trinta e cinco mil, significa nada, pode-se dizer que a relação entre fundamentalismo religioso e homofobia é, pelo menos, ignorância. Nada aparece sobre o tema em nenhum dos quatro livros do Evangelho e, de maneira muito mais contundente, aparecem prescrições contra o adultério, o assassinato, a avareza ou a falta de fé, por exemplo. Certo, pois, é o fato de que o estímulo ao regramento sexual, na valorização do comportamento heteronormativo, antes de estar baseado em uma defesa da moral bíblica, tem a ver com jogo político. Menos numerosamente voltados à constituição de família, não-heterossexuais fazem da liberdade uma poderosa arma em benefício do próprio sucesso intelectual e financeiro. E é desse sucesso que todos os homofóbicos têm medo: não tem nada a ver com a salvação.

O elenco em cena

“O Jornal – The Rolling Stone”, belíssima tradução de Diego Teza para a nona obra dramatúrgica do jovem Chris Urch, é uma das primeiras montagens internacionais do texto. Os aspectos estéticos da dramaturgia revelam excelente ritmo e elogiável cuidado com as palavras além de uma destacável construção de personagens e desenho da narrativa. Comparado no mundo ao clássico “As bruxas de Salém”, do americano Arthur Miller (1915-2005), mas também fácil de ser associado a “O santo inquérito”, do brasileiro Dias Gomes (1922-1999), eis aqui uma história que precisa ser contada.

No todo e em cada parte, grandes trabalhos de direção e de interpretação
A direção compartilhada de Kiko Mascarenhas e de Lázaro Ramos, com assistência de Ana Luiza Folly, tem o mérito de instaurar na abordagem um quê de artístico que nutre o drama positivamente. A musicalidade das palavras, o movimento dos atores no espaço, o modo como as cenas estão articuladas, o figurino e a trilha sonora, entre outros elementos em conjunto, inauguram uma atmosfera mítica. O Brasil pouco conhece da África como um todo e sabe menos ainda de Uganda em específico. E Mascarenhas e Lázaro não fazem desse desconhecimento um entrave para a fruição da peça, mas parecem associar na encenação o particular e o universal, fazendo das questões locais metáfora para uma triste narrativa que poderia acontecer (e acontece) em qualquer lugar do mundo. De modo positivo, eles aproveitam para tematizar o preconceito não como uma característica de um terminado tempo ou grupo social, mas como uma mazela que precisa ser erradicada esteja onde estiver.

A história, porém, não é ainda marcada em cena apenas por esse tipo de investimento estético. “O Jornal – The Rolling Stone” permanece fazendo conexão com a verdade além da cena pelo modo como os atores se relacionam com o público. Há olhares diretos, há aproximações físicas e todo um conjunto de silêncios por meio dos quais as catarses conseguem se realizar. Todos os intérpretes mobilizam um conjunto de qualidades artísticas que aproximam seus corpos discursivos da realidade: não se trata de uma tragédia (força contra o qual não poderá o homem lutar), mas de um drama (realidade que precisa ser alterada).

Todo o elenco apresenta excelente trabalho mesmo individualmente. Danilo Ferreira (Dembe), Indira Nascimento (Wummie) e André Luiz Miranda (Joe) dão vida a um trio de irmãos tão próximos no discurso, como também nas expressões, nos movimentos dos corpos, nas intensidades das emoções. Heloisa Jorge (Mama) no falar é tão sonora quanto silenciosa é Marcela Gobatti (Naome), sua filha, ambas explodindo nos medos que as atemoriza nos quadros onde aparecem suas personagens. Marcos Guian (Sam), trazendo uma dose de leveza inicial, é a única figura estrangeira do coletivo, essa que acaba submersa no desenrolar da trama, o que é justamente a parte mais importante da história. Os seis intérpretes têm pouca experiência em teatro, mas isso só se descobre lendo sobre eles além da narrativa. Quem os vê no palco alcança apenas felizes méritos aos quais se deve aplaudir.

Uma peça que precisa ser vista
“O Jornal – The Rolling Stone” é, além de tudo, uma peça que vale a pena ser vista pelo preciosismo na contribuição dos demais elementos estéticos. O desenho de luz de Paulo Cesar Medeiros recorta os personagens no espaço, criando quadros de íntima beleza no oferecimento de pontos de vista tocantes. Os figurinos de Tereza Nabuco colaboram com essa composição, explorando desde os níveis mais superficiais da África Mítica até elementos de uma cultura mais urbana e globalizada. A trilha sonora de Wladimir Pinheiro age no mesmo sentido, começando pelo hino nacional da África do Sul, que é também uma canção-tema para o continente em geral, até ir a melodias mais originais e igualmente belas.

Por causa do tema, mas sobretudo pelo modo como o debate se estabelece no campo estético, “O Jornal – The Rolling Stone” merece lugar de destaque na programação teatral desde fim de primavera e início de verão. Aplausos!

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Ficha Técnica
Texto de Chris Urch
Tradução de Diego Teza
Direção de Kiko Mascarenhas
Codireção de Lázaro Ramos
Com André Luiz Miranda (Joe), Danilo Ferreira (Dembe), Heloísa Jorge (Mama), Indira Nascimento (Wummie), Marcella Gobatti (Naome) e Marcos Guian (Sam)
Assistência de Direção de Ana Luiza Folly
Direção de Movimento de José Carlos Arandiba (Zebrinha)
Preparação Vocal de Edi Montecci
Realização e Produtores Associados Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas
Produção KM ProCult e BR Produtora
Direção de Produção Viviane Procópio e Radamés Bruno
Produção Executiva e Administração Viviane Procópio
Assistência de Administração Jandy Vieira
Equipe de Produção Igor Dib, Milena Garcia e Diego Teza
Iluminação Paulo César Medeiros
Assistência de Iluminação Júlio Medeiros | Montagem de Luz Boy Jorge, Luíza Ventura, Fabiano Gomes, Vilmar Ollos eRodrigo Emanuel
Operação de Luz Walace Furtado
Trilha Sonora Original Wladimir Pinheiro
Operação de Som Marcito Vianna
Estúdio de Gravação "DRS" e "FD"
Cantores Flavia Santana, Lu Vieira, Renato Ribone, Wladimir Pinheiro
Cenografia Mauro Vicente Ferreira
Assistência de Cenografia Rogério Chieza
Construção de Cenário Em Família Cenografia e Eventos
Adereços Mauro Vicente Ferreira
Figurinos Tereza Nabuco
Assistência de Figurinos Júlia Custódio
Costureiras Adélia Andrade e Severina da Silva Viana (Mainha)
Calçados Jailson Marcos
Assessoria de Imprensa de Antonio Trigo
Comunicação Web Urgh
Arte e Lay Out do Projeto Léo Dória / BR Produtora
Projeto Gráfico Novo Traço
Fotos de Estúdio Jorge Bispo

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