quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Borboletas de sol de asas magoadas (RS)

www.facebook.com/criticateatral
No instagram: @criticateatral
Foto: divulgação

Evelyn Ligocki

Ótimo monólogo sobre o universo trans completa 15 anos de sucesso em Porto Alegre


O belíssimo monólogo “Borboletas de sol de asas magoadas” completou 15 anos de sucesso. A peça é o mais antigo espetáculo teatral em cartaz no país com a temática da visibilidade trans. Idealizado, concebido e realizado por Evelyn Ligocki desde 2002, o projeto permanece vivo felizmente sem ter sucumbido no país que é líder no mundo em assassinatos de transexuais. Vale a pena ver e rever a bela montagem em oportunidades como a que lhe ofereceu o 19o Porto Verão Alegre.

O encontro com Betty
Em “Borboletas de sol de asas magoadas”, há um investimento da dramaturgia no aspecto íntimo e particular das travestis. Ao longo da peça, o público está sendo recebido por Betty em sua casa, como se estivesse lá para entrevistá-la e para conhecer o seu dia a dia. Então, o mundo que se vê é aquele visto pela protagonista em sua individualidade. O resultado é a criação de uma relação próxima entre o personagem e a audiência, o que humaniza o debate surgido naturalmente ao longo dos sessenta minutos de apresentação.

Para além da força da questão política e social dos transexuais, “Borboletas” tem o mérito de chegar ao ponto do humano. De início, o público está diante de uma travesti falante, contadora de causos, que impõe a sua cultura, os seus valores, o seu jeito e parece se orgulhar de ser protagonista em um mundo notoriamente diverso do de sua plateia. Ela explica sobre como se veste, como se maquia, conta sobre o que faz quando está em casa sozinha, sobre o contato com suas amigas e descreve expressões idiomáticas usadas nas conversas entre seus pares. No entanto, é muito bonito reparar como o texto vai para outros lugares além desse mais superficial.

O fim da peça, depois de um acontecimento marcante em sua dramaturgia, o público está diante de uma Betty diferente. Ou melhor, está-se de modo diferente diante da mesma Betty. Quem assistir ao espetáculo reconhecerá um trecho em que vida humana da protagonista corre risco. A representação desse momento é o que modifica o olhar da audiência a respeito da personagem. E é aí que a humanidade da plateia se encontra com a humanidade da anfitriã. O encontro celebra a mudança de uma perspectiva: Betty não é um ser mais diferente do que todos os diferentes com os quais nós nos encontramos. Ela é só um outro ser com sonhos, desejos, frustrações e planos similares aos de qualquer outra pessoa.

O espetáculo foi desenvolvido como projeto de conclusão do curso de graduação em Interpretação Teatral no Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS em 2002. E estreou conferindo à Evelyn Ligocki o troféu de Atriz Revelação no Prêmio Açorianos de Teatro Gaúcho. Esse se trata da mais alta honraria do Rio Grande do Sul aos atores. Em 2006, em São Paulo, Ligocki foi indicado ao Prêmio Qualidade Brasil na categoria de Melhor Atriz por sua interpretação de Betty.

Atualmente, “Borboletas de sol de asas magoadas” está junto de outras produções que também tratam sobre o universo trans. Vale citar produções de destaque nacionais como “BR-Trans”, dirigido por Jezebel de Carli e com Silvero Pereira no elenco; “Rio Diversidade”, idealizado por Márcia Zanelatto; e “Gisberta”, com direção de Renato Carrera e interpretação de Luis Lobianco. Todas essas e outras produções dão sua colaboração para a mudança das terríveis estatísticas às quais nosso país está envolvido em relação ao assassinato de transexuais. A partir de dados da respeitável Trangender Europe, que mapeia a situação no mundo, o Brasil é o pais em que há mais crimes motivados por homofobia no planeta. Em 2017, 171 transexuais foram assassinados aqui (no México, foram 56; nos Estados Unidos, 25; no mundo, 325). É um dado alarmante e triste que se espera modificar.

Excelente ritmo
Do ponto de vista de sua encenação, o espetáculo é ótimo. Ligocki rapidamente conquista a plateia com seu enorme carisma. Usando os tempos de maneira excelente, ela conduz a narrativa explorando diversos tipos de temporalidade: de trechos mais informativos, a situações mais líricas, da comédia ao drama, de uma movimentação silenciosa a quadros mais expressivos. A peça termina deixando um positivo desejo por mais, o que demonstra o excelente ritmo da montagem cuja colaboração artística é assinada por Celina Alcântara.

São excelentes as participações dos demais elementos estéticos da peça. O figurino se transforma de maneira simples mas incrível, sendo ele próprio conteúdo e metáfora para o que está tratando. A peruca loira de má qualidade, a maquiagem exagerada, os acessórios visivelmente baratos demonstram um empenho da produção em fazer ver que capricho não tem nada a ver com posses. Valoriza-se, nesse sentido, a sede de Betty pelo bonito e pelo sofisticado ainda que haja em suas vidas muita dificuldade financeira. O cenário age no mesmo sentido, reforçando a feminilidade e a ingenuidade não como oposições à força ou à esperteza, mas como marcas conjuntas que atuam em universo complexo.

Através da trilha sonora, vê-se romantismo, mas também uma certa vocação à felicidade. Em alguns momentos, quando a rua invade a casa de Betty, a sonoplastia projeta o mundo em seu redor. O desenho de luz, em auxílio a isso, cria espaços diferentes sobre o palco, contribuindo para a evolução do drama. Por tudo, também se observam os méritos da peça. No entanto, é na atuação de Evelyn Ligocki que está o ponto alto da produção.

Brava Evelyn Ligocki
Evelyn Ligocki faz Betty brilhar. Em primeiro lugar, há um excelente casamento entre corpo, expressões faciais e uso da voz. A personagem, que é brutalmente diferente da atriz, surge explorada por um enorme universo de detalhes, expondo, de um lado, o fulgurante repertório expressivo de Ligocki, e de outro, plena disposição dela em fazer da personagem um campo onde o encontro entre o público e a temática pode se dar. Além disso, destaca-se o modo excelente como a intérprete domina o tempo, as marcas e narrativa ainda mantendo o frescor no mónologo que se apresenta há tanto tempo. Se em outras produções longevas é comum sentir o mofo do cansaço, não é o que se vê aqui felizmente. Mas do que tudo há a defesa da encenadora no seu empreendimento estético. Evelyn acompanha todos os processos ligados à peça: da produção à realização, da criação à viabilização. Trata-se de um grande trabalho.

“Borboletas de sol de asas magoadas” é uma montagem brasileira necessária sócia e esteticamente. Vale a pena assistir e aplaudir muitas vezes. Brava!

*

Ficha técnica:
Texto, direção e atuação: Evelyn Ligocki
Colaboração artística: Celina Alcântara

A partícula de Deus (RS)

www.facebook.com/criticateatral
No instagram: @criticateatral
Foto: Diogo Vaz


Heitor Schmidt e Luis Franke

O bom encontro entre Galileu Galilei e Peter Higgs


Lançada no fim de 2016, a peça “A partícula de Deus – O dia em que Peter Higgs encontrou Galileu Galileu” é uma das mais novas comédias produzidas pelo Complexo Criativo Cômica Cultural. Sem muitas pretensões estéticas, ela visivelmente se propõe a ser uma oportunidade para, através do humor, incluir na agenda de interesses do público um pouco de filosofia, de física e de questões teológicas. E consegue relativamente bem atingir seus objetivos. Com texto de Julio Conte e de Marcelo Goldani, e direção do primeiro, ela é defendida por Renata Stein, Luis Franke e por Heitor Schmidt, os dois últimos nos papeis títulos e em maior destaque. Foi uma boa opção na grade de programação do 19o Porto Verão Alegre em sua apresentação no lindo teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, no centro da capital gaúcha.

Galilei e Higgs se encontram com Didi e Gogo
A dramaturgia de Julio Conte e de Marcelo Goldani se dá na antessala de alguém importante. Nela acontece o encontro de dois homens que esperam por uma audiência com o terceiro. Um deles veste uma roupa característica do século XVII na Europa, contrapondo-se com a estética de todo o ambiente e dos demais personagens. Vem daí o primeiro estranhamento. Lá pelas tantas, fica-se sabendo de que se tratam de dois cientistas muito importantes na história da humanidade. Eles estão à espera de um encontro com Deus: Galileu Galilei (1564-1642) e Peter Higgs, o primeiro já falecido há muitos anos e o segundo ainda vivo.

A ocasião é insólita. O personagem Higgs começa a duvidar sobre se está realmente vivo ou se morreu sem perceber. Por outro lado, Galileu se enfastia com a demora de Deus em recebê-lo. A espera coloca ambos na obrigação de um diálogo. Por que será que eles estão ali?

Galileu Galilei
Galileu Galilei (1564-1642) é um dos homens mais importantes da história da humanidade. Suas reflexões, para muito além da astronomia, revelam a complexidade não apenas do seu tempo, mas de toda uma cultura em transformação. Partindo de contribuições de pensadores contemporâneos e antigos e se utilizando dos avanços tecnológicos que uma Itália pós-Renascença lhe possibilitava, ele contribuiu de maneira ímpar para a estruturação de um novo panorama histórico. Sua argumentação científica mudou o lugar de Deus, seu conceito, suas funções, sua relação com os homens, com a política e com a sociedade. Em uma época nunca antes tão marcada pelas guerras religiosas, em que as fronteiras já alargadas do mundo precisavam se solidificar, ele foi definitivo.

Desde os gregos Aristóteles (384 – 322 a. C) e Ptolomeu (90 – 168 d. C.), prevalecia o sistema geocêntrico segundo o qual o sol e todos os demais astros giram em círculos perfeitos e constantes ao redor da Terra, onde há vida. Foi o polonês Copérnico (1473-1543) quem introduziu, como única diferença a esse modelo, a hipótese de que era a Terra que estava no centro. O italiano Galilei foi além. Para ele, em primeiro lugar, isso não era uma hipótese, mas uma verdade. A Terra não só se movia em redor do sol, mas se movia ao redor do próprio eixo e a Lua, que não era uma esfera perfeita, se movia em volta da Terra. Algo assim também acontecia com outros planetas, onde a vida poderia ser possível como aqui. Seus argumentos eram consistentes o bastante para fazer seus estudos célebres por toda a península. O problema foi sua tese de que os versículos bíblicos que diziam o contrário precisavam ser reinterpretados.

Se o dia e a noite, os movimentos das marés, o aparecer e o desaparecer dos astros do céu são obras da física, o que faz Deus? Se os teólogos da Igreja erraram na interpretação da Bíblia, para que eles servem? Tudo isso se parecia demais com o que dizia o padre dominicano Giordano Bruno (1548-1600), morto na fogueira da Inquisição. Para piorar, Galilei estruturou sua obra “Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo”, lançada em 1632, em uma conversa entre dois homens: um acadêmico inteligente (Salviati) e um padre idiota (Simplício). Nas palavras do segundo, estavam reproduzidas as ideias do então Papa Urbano VIII, que o autor havia conhecido anos antes. Nesse sentido, entre o célebre Copérnico e o incendiado Bruno, o pêndulo do destino de Galilei caia para o pior. Para adiante de uma leitura rasteira (porque óbvia) da Inquisição como malvada, sobram perspectivas mais profundas, como aquelas que revelam o aspecto político daquele contexto. Tanto as forças que abafaram como aquelas que eternizaram as contribuições de Galileu Galilei estão no cerne da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), esse talvez um dos conflitos mais importantes da Idade Moderna.

Por volta do centenário da Reforma Protestante, vários reinos que hoje são conhecidos como Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Holanda (entre outros) estavam em uma acirradíssima disputa pela liderança política e principalmente econômica no mundo. Essa só era possível através da posse de colônias na América, África e na Ásia. Lutero (Alemanha), Calvino (França) e Henrique VIII (Inglaterra) haviam colocado em xeque a força do Vaticano de referendar os avanços militares principalmente da Casa de Habsburgo (Sacro Império Romano-Germânico) nessa corrida. Na primeira metade do século XVII, a Europa estava dividida entre União Evangélica de um lado e Liga Católica do outro. Os Tribunais do Santo Ofício eram a bomba atômica (já usada com força há mais de duzentos anos contra os muçulmanos e judeus) em favor da segunda. Eis que, ameaçados (política-economicamente) pelos católicos Habsburgo, os também católicos Valois (da França), leia-se Cardeal Richelieu, entraram na batalha surpreendentemente a favor dos Protestantes. E é nesse momento que a Inquisição precisou ser mais efetiva do que jamais fora.

Amigo de Galilei, o Papa Urbano VIII livrou-o da fogueira, prendeu-o em casa e tentou calá-lo até sua morte, que aconteceu em 1642. Seis anos depois, a Paz de Vestfália foi assinada em favor da liberdade religiosa na Europa. Em 1965, a Inquisição passou a se chamar Congregação para a Doutrina da Fé (que ainda existe!). Em 1992, o Papa João Paulo II finalmente reconheceu o erro da Igreja para com Galilei e, em 2000, para todos os punidos pelo Santo Ofício. A obra de Galileu Galilei felizmente conseguiu atravessar os campos de batalha e chegou até nós todos.

Peter Higgs
Nascido em 1923 em Newcastle, extremo norte da Inglaterra, o físico Peter Higgs se popularizou por suas pesquisas acerca de uma nova partícula subatômica que veio a se chamar depois de “bóson de Higgs” ou mais popularmente conhecida como “a partícula Deus” (sic). Seus escritos sobre o tema, lançados em 1964, predisseram a descoberta que só foi finalmente comprovada em 2012, quando a comunidade científica internacional celebrou o encontro da peça que faltava na teoria do Big Bang. Em linhas gerais, o bóson de Higgs é o que fez (e ainda faz) com que partículas sem massa, sem matéria, ganhem corpo, isto é, nasçam. Ou seja, o sopro divino.

No início do século XX, as conclusões de Albert Einstein (1879-1955) de que o universo era estático foram contrapostas pelas de Edwin Hubble (1889-1953) que previa um universo eternamente em expansão. Em 1927, o padre jesuíta George Lamaître (1894-1966) lançou sua “hipótese do átomo primordial” que dizia, entre outras coisas, que, se o universo está constantemente em expansão, é porque ele foi, um dia, um único bloco extremamente quente e em vias de explosão. Essa teoria, que foi grosseiramente chamada na década de 1940 de “Big Bang”, resume o que aconteceu há 13,7 bilhões de anos no momento em que nasceu o universo. Esse primeiro átomo era, na verdade, uma sopa cósmica de energia sem massa se movimentando internamente em altíssima velocidade. As partículas internas do átomo interagiam por meio da gravidade, do eletromagnetismo e das forças nucleares fortes e fracas. O bóson de Higgs seria uma partícula surgida entre a interação das forças fracas e da eletromagnética que obrigaria outras partículas a fazer mais força para se movimentar. Isso seria ocasionado pela quebra de simetria espontânea entre os termos. A força gera massa e, assim, por exemplo, uma partícula que era só luz passou a ter corpo.

A atuação do bóson de Higgs ficou comprovada pelos testes que só foram possíveis a partir do lançamento do LHC (Large Hadron Collidor), instrumento que consumiu 10 bilhões de dólares e que só conseguiu ser inaugurado em 2008 entre a Suíça e a França. Trata-se de um enorme acelerador de partículas, por meio do qual elas ficam girando a 99,9% da velocidade da luz (300km por segundo) até se chocarem entre si. Em 2012, o choque entre pedaços de átomos fez ver outros pedaços ainda menores, entre eles, o tal bóson de Higgs. Um ano depois, Peter Higgs ganhou o Prêmio Nobel de Física por seu predito de cinquenta anos antes.

A expressão “Partícula Deus” vem do título de um livro do físico norte-americano Leon Lederman lançado em 1993 e que ainda não teve uma versão oficial editada no Brasil. A obra é um relato das buscas fracassadas da comunidade científica pelo bóson de Higgs. Inicialmente, o autor nomeou o livro como “A partícula maldita” (“The Goddamn Particle”), mas, por sugestão do editor, a obra passou a se chamar “A partícula Deus” (“The God Particle”). A preposição “de” veio das referências à obra pela mídia e consiste em um erro crasso de tradução. Dizer que a partícula é Deus é diferente de afirmar que tal pertence a Deus.

“Esperando Godot”
Na peça “A partícula de Deus”, os personagens Peter Higgs e Galileu Galilei se encontram na confrontação do lugar de Deus no fenômeno da criação. Em termos teológicos, o avanço da ciência pode representar, em mentes mais fechadas, a expulsão do domínio do divino. É pelas consequências desses atos de descoberta que Higgs e Galileu estão ali, naquele lugar fictício, à espera de um encontro com o “Criador”.

Para além de toda a primeira parte de introdução dos personagens e do que os leva até ali, há um ótimo trecho no fim da peça. É quando o encontro entre Higgs e Galilei se aproxima do de Estragon e Vladimir, personagens célebres do clássico “Esperando Godot”, obra prima do irlandês Samuel Beckett (1906-1989). Escrita no fim dos anos 40, a peça situa dois homens - Estragon (Gogo) e Vladimir (Didi) - esperando por um terceiro chamado Godot, com quem eles querem uma entrevista. De alguma forma, eles acreditam que essa oportunidade possa lhes oferecer uma melhora em suas vidas: pelo menos, um lugar quente onde possam dormir. O vazio do palco e a poética existencial de dois seres cuja vida ganha sentido no ato da espera (por algo que não vem) são dois traços marcantes na obra. A liberdade que se apõe à prisão, e Gogo e Didi estão presos em um tempo que não passa, associa essa obra aos conceitos mais fundantes sobre tragédia. Os diálogos, principalmente aqueles que falam sobre deus e sobre Cristo, empurram a audiência para o que há de mais humano em suas presenças clownescas. Toda a situação, lida como absurda por muita gente, fisga o leitor apesar da não evolução do tempo, da não troca do espaço, da negação das bases mais sólidas da teoria da narrativa.

Célebre também por “Fim de partida” e por “Dias felizes”, que foram escritos depois, a tragicomédia “Esperando Godot” fez Samuel Beckett famoso pelo mundo. A falência da sociedade, na Europa do pós-guerra, se via nas ruínas por toda a parte: nos milhares de mortos e de desaparecidos, na falta de graça, na grande pobreza. Em 1953, em Paris, quando “En Attendant Godot” foi apresentado pela primeira vez, o sucesso foi arrebatador. Depois, Londres, Nova Iorque e o mundo. Em 1969, Samuel Beckett ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Se a dramaturgia de “A partícula de Deus” por vezes gasta-se na situação dos personagens, ela atinge excelentes méritos quando essa questão está vencida. É interessante reparar como o humor vai se tornando mais refinado ao longo da leitura, abandonando as figuras míticas e o blá-blá-blá de dois homens comuns e avançando por questões mais existenciais e, ainda assim, tão cômicas quanto trágicas. É sem dúvida um bom texto de Julio Conte e de Marcelo Goldani.

Interpretações carismáticas de Luis Franke e Heitor Schmidt
Infelizmente, a encenação não valoriza o texto. O péssimo cenário, o figurino improvisado e a trilha sonora pautada em canções populares levam a obra para um lugar de amadorismo bastante negativo. Dirigida por Julio Conte com assistência de Catharina Conte, a peça sofre com o uso desses aspectos sonoro-visuais porque imediatamente se vincula a um lugar pouco valoroso de comédia popular de baixo orçamento. Por outro lado, talvez sejam justamente esses aspectos que permitam que o espetáculo surja de maneira mais leve e carismática enquanto seus níveis mais superiores não se aprofundam. Considera-se, no entanto, que há formas mais elegantes e concebidas de maneira mais consistente que permitiriam ao espetáculo chegar aos mesmos méritos e ainda a outros melhores.

A articulação dos quadros é marcada pelas intervenções cênicas da Secretária de Deus, personagem interpretado por Renata Stein. De modo muito interessante, os momentos pautam o lugar do absurdo no contexto narrativo, reforçando o estranhamento como principal chave de interpretação da obra na relação entre palco e plateia. Desse movimento, deve-se extrair o interesse da encenação em, por lado, deixar que a peça avance na comédia de costume, mas, de outro, suspendê-la em uma proposta estética mais avançada. A partir da observação desse percurso, reconhece-se com mais facilidade a trajetória argumentativa de “A partícula de Deus” no período de tempo e de espaço em que ela se apresenta.

Luis Franke e Heitor Schmidt atingem ambos alguma profundidade nas interpretações de Galilei e de Higgs respetivamente. Começando pelo primeiro e avançando no segundo, os dois intérpretes alcançam bom carisma na defesa de suas construções. Como já se disse, a produção lhes fornece uma dramaturgia interessante, mas muitos desafios a vencer na ordem do guarda-roupa, do cenário e da trilha sonora. Com bons usos da voz e das intenções, eles conseguem tirar proveito adequado, mantendo seus personagens com um registro realista que talvez seja sadio para a proposta nessa encruzilhada. Renata Stein, em lugar mais confortável, consegue expor sua criação de modo mais livre e igualmente bom.

Bom encontro
Mesas de bar, um divã com o fundo caindo, Galileu usando camiseta de malha e músicas populares em shuffle fazem um péssimo conjunto em "A partícula de Deus". Através desses e de outros elementos também mal usados, a produção cheira à montagem feita de qualquer jeito, para se apresentar em qualquer buraco e para qualquer pessoa. Essa aparência não condiz com o que se sabe serem os intentos e a experiência da Cômica Cultural por meio de seus realizadores. É nesse sentido que se observa que a montagem, seus criadores e público se beneficiariam com uma proposta estética mais bem acabada. Oxalá mudanças sejam feitas em próximas temporadas.

“A partícula de Deus – O dia em que Peter Higgs encontrou Galileu Galileu” ganharia se surgisse na programação gaúcha com melhor acabamento. Eis, desde já, uma produção boa de se ver e digna de aplauso.

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Julio Conte e Marcelo Goldani;
Direção: Julio Conte;
Elenco: Luis Franke, Heitor Schmidt e Renata Stein;
Assistência de Direção: Catharina Conte;
Iluminação: Fabiana Santos;
Sonoplastia e Projeções: Ismael Goulart;
Cenotécnico: Kiko Angelim;
Produção Executiva, Assessoria de Imprensa e Mídias Sociais: Gustavo Saul;

Direção de Produção: Patsy Cecato;
Realização: Fundação Médica do Rio Grande do Sul e Complexo Criativo Cômica Cultural;

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

As trevas ridículas (RS)

www.facebook.com/criticateatral
No instagram: @criticateatral
Foto: Júlio Appel

Frederico Vittola


Distante da crítica, montagem não resolve os problemas do texto

“As trevas ridículas”, do alemão Wolfram Lotz, é uma peça radiofônica que, para sua atualização ao palco, parece oferecer mais desafios do que privilégios ao encenador. Pelo menos, é o que que se pode acreditar depois de se ter lido a tradução do texto por Luciana Dabdab Waquil e de se ter assistido à montagem do Grupo Jogo de Experimentação Cênica dirigida por Alexandre Dill. Na narrativa, enquanto executa uma missão militar no Afeganistão, um sargento se encontra com vários personagens muito diferentes e todos eles contam as suas histórias. A galeria de figuras lado a lado compõe um panorama que defende, de forma negativa, um ponto de vista do autor sobre o multiculturalismo vigente mesmo em lugares muito afastados. Com Vicente Vargas, Gustavo Susin, Guilherme Conrad, Lucas Prado e Frederico Vittola no elenco, há bons destaques nos trabalhos desses dois últimos. A peça fez duas apresentações no Instituto Goethe por ocasião do 19o Porto Verão Alegre.

Os cinco desafios não vencidos de “As trevas ridículas”
Lançada em 2014, a peça “Die Lächerliche Finsternis”, do jovem alemão Wolfram Lotz, foi escrita para ser veiculada através do rádio. No entanto, popularizaram-se pelo mundo várias montagens teatrais baseadas nesse roteiro desde então. No Brasil, o projeto TRANSIT, idealizado pelo Goethe Institut de Porto Alegre, promoveu duas versões cênicas da obra dirigidas por dois diretores diferentes: Alexandre Dill e Camilo de Lélis. O espetáculo do segundo se chamou “Nas sombras do coração” e a produção de Dill recebeu o título de “As trevas ridículas”. As duas versões estrearam na capital gaúcha em maio de 2017 por ocasião do 12o Festival Palco Giratório promovido pelo SESC.

De início, o roteiro original apresenta, pelo menos, cinco desafios ao encenador que quiser adaptá-lo para o palco. Essa análise, que se debruça sobre o espetáculo do Grupo Jogo, pretende refletir sobre a dificuldade desses desafios no sentido de argumentar em favor dos possíveis méritos da referida produção, mas também dos problemas que ela não conseguiu resolver. 

O primeiro problema que a obra original empurra para o encenador é a situação narrativa. De maneira muito esquisita, o texto de Lotz apresenta duas frentes diegéticas, mas as desenvolve de modo muito diverso. De um lado, em um tribunal em Hamburgo, no norte da Alemanha, há um pirata somali chamado Ultimo Michel Pussi se defendendo contra a acusação de ter atacado o navio de carga alemão MS Taipan. O personagem, ao confessar-se culpado, utiliza como argumento de sua defesa a tese de que, em seu país, as coisas são diferentes. E narra que foi jogado ao crime por causa da pesca agressiva e do lixo tóxico do oeste dito civilizado. O episódio ficcional é claramente baseado no sequestro real de um navio de mesmo nome. Em 5 de abril de 2010, enquanto navegava pela Costa da Somália no Oceano Índico, a embarcação MS Taipan foi invadida por dez piratas somali que acabaram presos e condenados. Pussi pede a compreensão do juiz no alívio de sua pena, narrando que o grande navio havia destroçado seu pequeno barco de pesca, esse que tinha sido comprado com muito esforço por ele e por seu amigo Tofdau, que acabou desaparecendo no mar depois do incidente.

Do outro lado da narrativa, numa segunda frente diegética do roteiro, há a viagem do sargento alemão Oliver Pellner e de seu imediato Stefan Dorsch pelo interior do Afeganistão. Eles estão em uma missão secreta atrás do tenente Karl Deutinger, que matou seus companheiros. E, enquanto adentram o país, encontram-se com um grupo de nativos reunidos sob o comando da ONU. Eles colhem produtos que são vendidos a grandes empresas de telefonia celular e são organizados por um oficial chamado Lodetti, que a Pellner narra seu problema com drogas e com mulheres quando era uma criança de cinco anos. Há também o encontro com o mercador Stojkovic, que vende produtos diversos no interior da floresta e que diz morar em um barco depois que sua casa e família foram incendiadas pela OTAN. Há ainda o Reverendo Carter, que transforma mulheres muçulmanas em mulheres do mundo: livres das burcas e dadas a um comportamento sexual mais livre. O trajeto termina com uma espécie de encontro com Deutinger. Quem for ver a peça (ou ler o texto) vai entender melhor como isso se deu.

Cabe ao encenador dar conta do modo como esses dois blocos narrativos interagem entre si. No texto, a história de Pussi é contada em primeira pessoa em um monólogo único longuíssimo que abre a dramaturgia. Já a história de Pellner é totalmente dividida em vinte e cinco cenas nas quais atuam o narrador, mas também os personagens envolvidos. Nesses termos formais, fica fácil de se perder na confusão, pois não se entende como a história saiu de um tribunal na Alemanha para o meio de uma enorme floresta no Afeganistão. E, da mesma forma, é difícil reconhecer algum laço entre o drama do pirata e as aventuras do sargento. Desde aqui, se pode dizer que o grande navio de carga estraçalhando o pequeno e frágil barco de pesca, na imagem inicial, é uma metáfora para a dominação das grandes potências mundiais sobre as culturas menos bélicas no resto da peça. E também que a invasão de hábitos, de valores e de objetos do mundo industrializado nas sociedades mais rurais pode ser uma consequência desse estraçalhamento. Essas duas questões são a crítica de Lotz ao imperialismo e ao colonialismo, que o encenador precisa organizar e que a direção de Dill não deixou ver em sua maior potência.

Em “As trevas ridículas”, a direção leva, ao texto confuso, um enorme número de ações que deixa a compreensão ainda mais difícil para o espectador. O monólogo inicial de Pussi, que talvez seria mais compreensível através de uma prosódia mais calma e didática, surge cheio de grandes movimentações com as quais o público tem que lidar em acréscimo a todo o contexto narrativo que o personagem traz. O peso com que Dill parece tratar toda a questão de abertura prossegue nas cenas de Pellner até esbarrar nas figuras de Lodetti, de Stojkovic e de Carter. Nesses personagens, o tom ridículo parece carregar a crítica de Lotz através de outros braços, de mãos mais cômicas, mas igualmente efetivas. O problema é a volta da seriedade. O ritmo cai novamente e o que era confuso mas divertido, agora novamente é confuso e chato.

O segundo problema do roteiro radiofônico de Lotz para quem for transformá-lo em dramaturgia é os diferentes interlocutores. O pirata Pussi está falando com o juiz que irá provavelmente condená-lo à prisão. Mas com quem o sargento Pellner fala? Nesse termo, pode-se dividir o discurso de toda a segunda parte da peça em dois grandes blocos que se alternam. No primeiro, Pellner descreve a alguém a sua viagem após o fim dela. No segundo, Pellner está na viagem, vivendo os momentos descritos no bloco anterior. Essa alternância reivindica da encenação maior cuidado. Em “As trevas ridículas”, talvez por limitações nos trabalhos de interpretação, mas também porque vários atores têm personagens duplicados, a complexa teia discursiva da peça não colabora bem com o todo. Se o segundo bloco está bem resolvido, o primeiro parece longe de também estar.

Continuando próximo ao segundo problema, mas já em outro, há a questão do tempo. Presente, passado e concomitância são elementos que, fossem melhores trabalhados, auxiliariam na transformação de “As trevas ridículas” do roteiro para rádio à dramaturgia para teatro. Todos os personagens, em algum momento, trazem um relato do passado para o presente de suas presenças. Esse vai e vem, que dificulta a aproximação da audiência à peça, precisaria ser melhor resolvido. Na direção de Alexandre Dill, de modo negativo, tudo parece estar no mesmo ambiente. E esse debate deve fazer o Brasil se lembrar dos vários planos de “Vestido de noiva”, clássico de Nelson Rodrigues cuja estreia marca o início da história do teatro brasileiro.

O quarto problema tem a ver com a função no todo das narrativas integrantes. Em “As trevas ridículas”, há uma galeria de pequenas histórias que não modificam a trama principal, mas, para quem assiste, isso só vai ficar claro no fim. Desse modo, a maneira como a direção de Dill trata essas histórias menores prejudica a apreensão do todo: no espetáculo, tudo parece ter a mesma importância. Tratam-se, porém, de recursos de linguagem que argumentam em favor da crítica de Lotz e nada mais. A trama principal do texto é a busca de Pellner por Deutinger, essa que o crítico Renato Mendonça, de maneira brilhante, associou a “O Mágico de Oz” em sua avaliação.

Por fim, há o lugar simbólico da escuridão em “As trevas ridículas”. No rádio, só há a voz dos atores e tudo o mais é escuridão. A mata para Pellner é, a princípio, um mundo desconhecido. O futuro na prisão que Pussi vislumbra é também as trevas, assim como o paradeiro de Tofdau e de Deutinger que no nada habitam. A direção de Alexandre Dill, porém, elege um outro símbolo para a adaptação do texto para palco. Originalmente, ela escolhe um enorme contêiner que domina o palco e traz ainda mais complicações para a narrativa, pesando a encenação.

Lucas Prado e Frederico Vittola em boas interpretações
Devem-se considerar, ainda, as marcas espetaculares que vão além da relação entre a dramaturgia e o roteiro na qual ela se baseou. De um modo geral, do ponto de vista das interpretações, pode-se dizer que os cinco atores têm conceitos vacilantes sobre o que defendem em cena. Em alguns momentos, há uma seriedade própria de peça realista-documental, como o monólogo de abertura ou como os diálogos entre Pellner e Dorsch. Em outros, porém, há uma brincadeira que leva ao ridículo, como a participação do Reverendo e a história de Stojkovic. Essa dubiedade expressa uma concepção não tão bem amarrada que, se tem méritos no interior dos entrechos, perde-os na relação entre eles na estrutura da peça.

A movimentação, além disso, sofre com um palco tomado por um enorme contêiner e com uma divisão espacial pouco clara no desenvolvimento da narrativa. A falta de melhor fluidez na articulação de todos os elementos prejudica a peça, trazendo um negativo desconforto para o público que lê a abordagem com monotonia.

Gustavo Susin (O pirata Pussi) usa bem o corpo no que diz respeito à movimentação e ao gestual, mas apresenta dicção com muitos problemas. É difícil entender o que o ator fala e isso é mais problemático ainda quando se trata de um monólogo longo e importante como o dele nessa peça. Guilherme Conrad (Stojkovic e Deutinger) traz uma presença cênica relativamente apagada e apoiada unicamente no visagismo de seu personagem. Vicente Vargas não desenvolve seu sorumbático Dorsch, descansando em uma visão apática dele que o texto permite. Lucas Prado investe com fluidez na caricatura ao construir o Reverendo Carter e o comandante Lodetti. Nessas duas colaborações, o ator tira boas vantagens dessa possibilidade, viabilizando enorme carisma por meio de textos bem ditos e pausas bastante qualificadas no desenho das entonações.

Frederico Vittola, com coragem e técnica bem empregadas, apresenta um Sargento Pellner que se serve bem de seu porte físico imponente e de seu ótimo uso da voz. Seu protagonista encontra nele boa disponibilidade para movimentar a narrativa por meio de uma interpretação íntegra, segura e firme em suas concepções.

Ótimo figurino de Manu Menezes
O figurino de Manu Menezes é o elemento mais bem usado em “As trevas ridículas”. Com potência, nessa questão, está na montagem a crítica ao imperialismo por meio do uso de um guarda-roupa bastante urbano e popular mesmo no meio de uma mata longínqua. Veem-se ótimas escolhas e a organização de um visagismo que oferece bons artifícios às interpretações e ao espetáculo como um todo. O cenário de Reynaldo Netto também aparece através de elementos bem cuidados. Dentro da proposta já julgada, vale dizer que sua aparência oferece à estética do todo boas contribuições, ainda que traga problemas à concepção. O desenho de luz de Lucca Simas se perde em meio aos outros elementos, ficando alijado de contribuir de modo mais qualificado infelizmente. A direção musical de Bibiana Petek, com destaque para a interpretação de “The lion sleeps tonight” pelo elenco ao vivo em cena, é outro ponto que merece ser valorizado na análise. Em todas as suas contribuições, sobretudo naquelas em que brinca com os sons oferecendo imagens que se contrapõem ao que é citado no texto, traz valores bastante especiais.

O desejo da direção de falar para além do muito que já é dito no texto original talvez tenha impedido a montagem do Grupo Jogo de responder com mais qualidade aos problemas do roteiro de Wolfram Lotz. Considera-se, assim, que “As trevas ridículas” permanece, nessa adaptação, distante do seu tema principal: a crítica ao imperialismo.

*

Ficha técnica:
Texto: Wolfram Lotz
Direção: Alexandre Dill.
Intérpretes: Vicente Vargas, Guilherme Conrad, Lucas Prado, Frederico Vittola e Gutavo Susin
Direção Musical: Bibiana Petek
Preparação Vocal: Lígia Motta.
Desenho de Luz: Lucca Simas
Figurino: Manu Menezes
Cenografia: Reynaldo Netto
Cenotécnico: Rodrigo Shalako
Colaboração: Jezebel de Carli
Arte Gráfica: Késsio Guerreiro.
Fotos e Vídeos: Pedro Mendes.
Assessoria de Textos: Giorgia Fiorini
Produção: GrupoJogo de experimentação Cênica

sábado, 27 de janeiro de 2018

Ícaro (RS)

www.facebook.com/criticateatral
No instagram: @criticateatral
Foto: Fernanda Chemale

Luciano Mallmann

Luciano Mallmann brilha em ótimo monólogo


O ótimo monólogo “Icaro” é a mais nova produção de Luciano Mallmann como ator. Escrita a partir de depoimentos reais de pessoas cadeirantes, o texto é levado à cena sob direção de Liane Venturella. Na peça, em ótimo trabalho de interpretação, o ator narra a sua própria história, intercalando com três outras de pessoas com quem ele conversou durante sua pesquisa de construção dramatúrgica. Em todas elas, há uma convite tocante à reflexão sobre o que realmente vale a pena na vida. O espetáculo participou do 19o Porto Verão Alegre, tendo se apresentado no Teatro do Instituto Goethe, no Bairro Moinhos de Vento.

Histórias reais
São quatro histórias. A primeira é a da Namorada de Guto, uma garota que, tendo bastantes dificuldades no relacionamento com a mãe, se vê totalmente dependente dessa para viver após um acidente que lhe condenou à vida em uma cadeira de rodas. Ao longo de todo o trecho, o público acompanha a transformação dos sonhos da protagonista entre antes e depois da tragédia, mas também os golpes de sorte que lhe aconteceram e que lhe fizeram retomar o sorriso.

Depois, há a história de um Lutador super machista e preconceituoso que, diante da determinação de ter que usar cadeira de rodas, precisa atualizar seus valores, seus sonhos, seus projetos e, enfim, tornar-se um novo homem. A história dele, que termina com uma menção ao sonho humano de voar, faz alusão ao mito grego de Ícaro. O personagem é aquele filho de Dédalo que, fugiu do labirinto onde o minotauro esteve preso com a ajuda de asas feitas com mel de abelha. Ao voar, Ícaro fica completamente apaixonado pelo sol e, ao aproximar-se dele, suas asas derretem, fazendo com que ele caia. Essa é a provavelmente a imagem que dá título ao espetáculo.

Há ainda a história da Mãe de Luís Antônio, uma mulher que, já como cadeirante, conhece seu grande e amor, casa-se com ele e engravida. Ao longo de sua história, o público acompanha o perigo dessa gestação de risco até o desenlace emocionante.

Por fim, há a própria história de Luciano Mallamann: sobre como ele concebeu o espetáculo e também sobre sua vida em cadeira de rodas.

Em termos de dramaturgia, “Ícaro” se pauta, de modo muito delicado, na rapsódia através da qual se vê um homem contando histórias tendo como elementos da narrativa quase que unicamente sua voz e seu corpo. É um trabalho tocante.

Delicada direção de Liana Venturella
A direção de Liane Venturella trabalha com poucos elementos, valorizando o contato humano entre a audiência e o ator. Na estrutura espetacular, percebem-se o estabelecimento e a manutenção da ação através de uma movimentação muito sutil, da alternância delicada de gestos e sutis, mas vitais participações da trilha sonora e da iluminação. O todo se apresenta bem articulado, coeso e coerente e, dessa maneira, meritoso em seu esforço de intermediar a relação proposta entre a encenação e o público.

Luciano Mallmann oferece à cena uma interpretação bastante qualificada dentro de uma proposta estética intimista e, portanto, mais próxima do real. Em cada personagem, há um pequena alteração no corpo e na voz que, considerando a relação estabelecida com a plateia, são ações que resultam até grandiosas. Em destaque, há o jeito carismático com que ele narra a sua própria história, a excelente dicção e o cuidado no ritmo das entonações também. Eis um bom trabalho!

Emociona sem ser sensacionalista
Em “Ícaro”, deve-se ainda valorizar a preciosa trilha sonora de Mônica Tomasi e a luz de Fabrício Simões, como elementos que colaboram com o todo pelo ratificar da elegância e do comedimento de toda a situação. Esses adjetivos têm seus méritos contempláveis pelo modo como o monólogo emociona sem parecer sensacionalista e toca sem levar ao melodrama. O espetáculo, que estreou em março de 2017, merece ser visto e aplaudido mais vezes.

*

Ficha técnica:
Dramaturgia: Luciano Mallmann
Direção: Liane Venturella
Ator: Luciano Mallmann
Trilha sonora: Monica Tomasi
Iluminação: Fabrício Simões
Preparação vocal: Ligia Motta
Divulgação: Leo Sant’Anna
Fotógrafa: Fernanda Chemale
Produção: Luciano Mallmann

Os homens do triângulo rosa (RS)

No instagram: @criticateatral
Foto: Luciane Pires

Marcelo Adams e Frederico Vasques

Uma cópia mal feita e não-autorizada de “Bent”

“Os homens do triângulo rosa”, novo espetáculo da Cia. Teatro Ao Quadrado, é, na verdade, uma versão reduzida e não-autorizada de “Bent”, do americano Martin Sherman. Sem consultar o autor, passando por cima de uma série de questões importantes na obra original e dando uma pinta de adaptação ao se dizer baseada também outras obras, o espetáculo dirigido por Margarida Peixoto se inclui na grade de programação teatral porto-alegrense de maneira muito estranha. Há excelentes interpretações de Marcelo Adams e de Frederico Vasques e não menos valorosos figurinos de Antônio Rabadan e, por causa deles e das boas intenções da temática, talvez valha a pena ver quando estiver de novo em cartaz. A sessão aqui analisada foi apresentada no 19o Porto Verão Alegre, festival de artes cênicas de Porto Alegre que encerrará no próximo dia 8 de fevereiro, tendo trazido 78 espetáculos gaúchos ao público sul-brasileiro.

Distâncias entre “Bent” e “Os homens do triângulo rosa”
Escrito em 1978 e levado a cartaz, pela primeira vez, em Londres um ano depois, “Bent” foi o primeiro hit do norte-americano Martin Sherman, sendo “Rose” e “The boy from Oz” outras duas peças dele muito conhecidas, além do filme “Callas Forever”. O protagonista Max foi interpretado por Ian McKellen em West End e Richard Gere deu vida ao mesmo personagem na versão da Broadway em 1980. José Mayer assinou o papel na produção brasileira de 1981, essa que foi dirigida por Roberto Vignati e que tinha também no elenco Tonico Pereira como Horst e Ricardo Blat como Ruddy. Em 2007, dirigido por Luiz Furlanetto, o texto ganhou nova montagem oficial, tendo Augusto Zacchi e Gustavo Rodrigues como Max e Horst respectivamente. No cinema, a versão dirigida pelo galês Sean Mathias, teve Clive Owen no papel protagonista e Mick Jagger no de Greta. 

O adjetivo “bent” é uma expressão pejorativa que servia, antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), para descrever um estado aéreo ocasionado pelo uso de drogas e de álcool. Nos anos 20, na Europa, com a explosão do consumismo sob influência norte-americana através do teatro, do cinema e da música principalmente, o uso de substâncias alucinógenas esteve intimamente associado a comportamentos sexuais desregrados. Popularizaram-se os cabarés, a dança moderna, roupas mais curtas e a atividade sexual com vários parceiros e parceiras. A palavra “bent”, então, passou a ser sinônimo de homossexual ao lado de “gay”, “queer” ou “fluffer”, “faggot”, “dyke”, “fairy”, similares ao que temos em português como “bicha”, “viado”, “sapatão”, “puto”, “fanchona”, etc. Nesse sentido, ao nomear seu texto com a expressão “bent”, Martin Sherman quis, de modo muito pontual, associar a homossexualidade aos cabarés dos anos 20 e 30.

Mais do que sobre holocausto, mais do que sobre o amor – e esses dois temas são muito importantes – , “Bent” é sobre a força interna que os homossexuais têm dentro de si. Ela é uma das armas que eles têm para vencer as dificuldades e atravessar um mundo tão cheio de preconceito, pois fornece a quem a usa a possibilidade de ver o horizonte com outras perspectivas, essas talvez mais alegres, mais debochadas, mais felizes. Ao longo de todo o texto original, Sherman traça um percurso simbólico bastante significativo cujo mapa semântico é onde se apoia toda a sua visão acerca do tema. Aqui valerá recuperar esses sinais para se identificarem os problemas e os méritos da dramaturgia de “Os homens do triângulo rosa”.

O cabaré é o primeiro grande símbolo de “Bent”. Trata-se de um espaço alternativo onde tudo é possível: homens ficarem com homens, mulheres ficarem com mulheres, várias pessoas ficarem com várias pessoas. Pode-se ser gordo ou magro, artista ou militar, judeu ou cristão. As drogas, as bebidas, a música permitem que, em seu interior, haja um acordo tácito que estabelece que não há regras, mas liberdade. “Bent”, como também os célebres musicais “Cabaret” (1966) e “Victor ou Victoria” (1982), começa com uma despedida desse universo no contexto do fim da República de Weimar no período da ascensão de Hitler como chanceler alemão. A explosão de alegria desse ambiente serve como espelho invertido do que se vai ver depois. E é nesse contexto que aparece Greta (ou o inesquecível Mestre de Cerimônias de Joel Grey), cuja dor em seu olhar vem causada pela previsão de que tudo ali já acabou.

Em “Os homens do triângulo rosa”, isso não acontece. No original, Greta é um travesti, isto é, um homem que se veste de mulher. O contexto não tem a ver apenas com uma questão de orientação sexual ou de expressão de identidade, mas com a marca da fantasia: a possibilidade de ser outra pessoa e de se utilizar desse personagem para resolver questões internas. Na montagem da Cia. Teatro Ao Quadrado, Greta vem defendida por uma atriz cisgênero (Gisela Habeyche), o que inegavelmente destrói diversos níveis essenciais de significação da personagem. Demora muito e não fica de todo claro de que se trata de uma mulher interpretando um homem que está vestido de mulher, mas, sim, uma mulher vestida de mulher. Pior do que isso, Greta daqui não traz nenhuma maldição, mas apenas um colorido engraçadinho na abertura da peça que não servirá para nada ao longo de toda a sua narrativa a não ser alongá-la em péssimo ritmo.

“Bent” realmente começa na casa de Max e de Rudy no amanhecer depois de uma noite de orgias. O diálogo de abertura serve para evidenciar a exuberância das conquistas dos homossexuais na sociedade da época. Havia, sim, na Alemanha, diversos artigos legais que não promoviam um ponto de vista jurídico igualitário entre pessoas de orientações sexuais diferentes. No entanto, a cena quer afirmar que se tratava de uma sociedade relativamente aberta considerando a dureza do período naquele país sofrido depois de ter perdido a Primeira Guerra Mundial. Na noite anterior, Max havia chamado diversos homens para uma orgia sexual em sua casa - que ele dividia com o namorado Rudy - regada à cocaína. Um deles, Wolfgang Granz, ainda está lá quando ouvem-se batidas à porta. De início, pensa-se que é o senhorio que veio cobrar-lhes o aluguel atrasado, mas todos estão enganados. São agentes da SS, o Esquadrão de Proteção dos altos oficiais nazistas, a elite da milícia partidária. Eles vieram atrás do jovem hóspede de Max porque descobriu-se uma relação afetivo-sexual entre ele e Karl Ernst (1904-1934), esse último um alto oficial ligado a Ernest Röhm (1887-1934), braço direito de Hitler, além de co-fundador e chefe da SA, a Tropa de Choque do Partido Nazista. No episódio histórico que ficou conhecido como “A noite das facas longas”, entre 30 e 1o de julho de 1934, vários oficiais da SA foram mortos, incluindo Röhm e Ernst, reconhecidos publicamente como homossexuais. Como testemunhas do crime, Max e Rudy precisavam fugir.

Em Berlin, todas as conquistas sociais da República de Weimar foram abolidas com o advento do Terceiro Reich. A Alemanha se tornou um lugar inóspito para vários grupos, incluindo os gays. A partir da aprovação do artigo 175 do Código Penal da Alemanha Nazista (que só foi revogado em 1994, sessenta anos depois!), ficou proibida qualquer relação sexual entre homens (não entre mulheres), bem como qualquer atividade que promovesse isso de alguma forma. Ao abandonar a própria casa para salvar a vida, Max e Rudy descobrem quem denunciou o paradeiro de Wolfgang Granz e como se deu essa delação. A mudança no ambiente fica ainda mais terrivelmente óbvia depois da conversa entre Max e seu tio Freddy, que arruma para o sobrinho meios dele fugir da Alemanha. Max se nega a sair do país sem seu namorado, dizendo-se responsável por ele. Um ano depois, ao acariciarem-se em público enquanto cantarolam a música “Streets of Berlin”, com a qual Greta abriu a dramaturgia, Max e Rudy são presos pela Gestapo, a polícia secreta do Partido Nazista, e enviados ao Campo de Concentração de Dachau, no sul da Alemanha.

Essa sequência de cenas surge relativamente frívola – e longa! - em “Os homens do triângulo rosa”. Rudy parece se divertir com o namorado e Wolfang juntos em sua casa, quando no original ele teme o fato de que o terceiro jovem é um militar. Pior do que isso, na versão da Cia. Teatro Ao Quadrado, parece que os dois protagonistas do quadro não percebem a seriedade da mudança política do país, o que reduz o ponto de vista da audiência sobre os motivos que impedem Max de partir. Não se trata de uma vontade de ficar junto do namorado, mas de uma certeza de que Rudy morrerá sem ele por perto. Dor similar também não se veem nas abordagens de Greta e de Tio Freddy, que aqui parecem ser meros floreios da narrativa, sem um aprofundamento crítico de todo um mundo que se desfalece diante de seus olhos. Há também um detalhe pequeno, mas grosso. Nessa produção, Max e Rudy são presos ao cantarolar “Over the rainbow”, mas essa canção só se tornou conhecida após 1939, com o filme “O mágico de Oz”, ou seja, quatro anos após o fato descrito na peça.

Outro símbolo importante para “Bent” surge no vagão do trem que levava os prisioneiros para o Campo de Concentração. Diante de Rudy, um oficial requisita seus óculos, dizendo que eles são um sinal de gente inteligente. Na cena anterior, ele havia reclamado para Max de que precisava de óculos novos, pois os seus já não estavam lhe ajudando a enxergar. O oficial exige que Rudy pise sobre as lentes, esmagando-as. De modo muito significativo, a visão comprometida do personagem fica destruída agora: aos regimes totalitários, não interessa que as pessoas vejam, pois a inteligência é prejudicial. De um modo horrível, Rudy desaparece da história, e essa é a primeira libertação de Max, que agora já não é mais responsável por alguém além dele próprio. O que aconteceu em seguida Max narra para Horst, um outro prisioneiro que assistiu a tudo de dentro do mesmo vagão. É Horst quem descreve para Max o significado dos símbolos costurados nos uniformes dos presos: uma estrela amarela para judeus, um triângulo vermelho para presos políticos, roxo para Testemunhas de Jeová, preto para antissociais e rosa, o nível mais baixo, para homossexuais. Com uma artimanha deplorável, através da qual se vê que os homossexuais estão abaixo dos pedófilos e dos assassinos, Max livra-se do triângulo rosa e ganha para si uma estrela amarela. Em “Os homens do triângulo rosa”, essa sequência recebe contribuição bastante positiva, porque quase não há alterações no texto original. O ritmo da cena permanece bom e todo o quadro se mantém em abordagem semanticamente potente.

Toda a segunda grande parte da peça acontece durante a estadia de Max no Campo de Concentração de Dachau. É lá que, “beneficiado” por vestir uma estrela amarela no peito, Max se sente novamente responsável por outra pessoa: Horst, que veste um triângulo rosa. Nesse trecho, tem lugar uma das cenas mais célebres da dramaturgia universal contemporânea, que é o quadro em que Max e Horst têm uma relação sexual sem se tocarem, usando unicamente as palavras e a mente. Através desse quadro, em uma ratificação de todo o ideário estético de Martin Sherman em “Bent”, fica expresso o seu interesse em pontuar que todas as agressões externas ao homem não são suficientes para destruir o que está dentro dele: a força capaz de tornar o homem incorruptível pelo menos no seu cerne. A Cia de Teatro Ao Quadrado mantém a cena íntegra apesar de não pagar os devidos tributos ao seu autor, o mesmo porém não se pode dizer sobre o que vem antes e depois dela.

Em “Os homens do triângulo rosa”, as interferências na dramaturgia afastam quase toda a segunda parte de “Bent” dos níveis mais importantes da construção do seu sentido. As cenas aparecem longuíssimas, com diálogos frouxos e em uma proposta que faz o contexto parecer uma tola oportunidade para DR (discussão de relacionamento). Na verdade, Dachau era um campo de concentração, um lugar onde o genocídio de Hitler se deu: o mais terrível episódio da história contemporânea da humanidade. O absurdo da situação vivida pelos personagens não tem nada a ver com o absurdo enquanto estética. Tornar Max e Horst efeitos linguísticos como os personagens de Beckett ou de Ionesco é quase uma agressão histórica. O resultado é uma pulverização do capital sensível da obra original.

É preciso reconhecer, pelo menos, a transformação do protagonista Max ao longo da narrativa. Ele se sente responsável por Rudy da mesma forma como se sente responsável por Horst e, quando ambos desaparecem, ele fica livre do encargo da existência alheia. O muda nele? A descoberta do amor. E é aí que o brilhantismo de Sherman surge em sua maior glória. A habilidade que “Bent” defende dos homossexuais em maquiar a realidade para enfrentá-la termina quando essa se vê diante do amor. Ao reconhecer-se amando, e de novo longe do ser amado, a vida já não faz sentido, a força perde a razão de existir. Max, como uma nova versão do cordeiro imolado, o protagonista se entrega à paixão: não como vítima do sistema, nem como algoz de si próprio, mas como responsável por si. E seu gesto final de coragem não tem nada a ver com o choro melodramático com que o Max de “Os homens do triângulo rosa” encerra sua atualização.

Méritos na interpretação de Marcelo Adams e de Frederico Vasques
A direção de Margarida Peixoto cumpre papel vital na transformação de “Bent” em “Os homens do triângulo rosa”. É dela - da direção - a responsabilidade de tornar a peça um espetáculo de duas horas e meia de duração, coberto de tempos mortos e afastado do texto original, ainda que lhe aproveite todas as falas, personagens e situações. Por outro lado, são seus os méritos pela excelente qualidade da cena de amor entre Max e Horst que se vê no palco, bem como da limpeza nas entradas e saídas do elenco dentro do tablado. Assim, por um turno, se a versão da Cia. Teatro Ao Quadrado surge gordurosa e sem profundidade, por outro, há que se dizer que é uma montagem limpa e equilibrada dentro da sua proposta.

As interpretações têm seus pontos altos e baixos. Gisele Habeyche defende sua Greta de maneira sofrível. Em primeiro lugar, como já se disse, é um personagem cuja ironia e acidez estão completamente apoiadas sob a égide do travestismo, o que, de antemão, impõe enormes desafios a uma atriz mulher cisgênero. Depois disso, nessa versão, ela surge em muitos momentos distintos da peça (Em “Bent”, a personagem só aparece na primeira parte.), cantando várias canções. Sem alcançar bem nem agudos, nem graves, a atriz desafina em muitos momentos e, na falta de um interlocutor mais claro (Greta, no original, vomita o seu canto para um mundo do qual ela se despede.), traz um discurso vazio. O sapato de salto alto imenso e a luz no rosto da atriz também lhe tiram segurança na mobilidade de maneira que a única coisa elogiável dessa participação é o seu figurino.

Pedro Delgado (Tio Freddy) e Edgar Rosa (Wolfgang Granz) oferecem construções sem profundidade que parecem resultantes de uma negativa inexistência de processo criativo. O caso do segundo é também, como em Habeyche, uma questão de casting, pois não se acredita que um ator de estatura mediana e moreno possa ser um oficial da SA em pleno florescer do Terceiro Reich. Alex Limberger (Oficial) defende bastante bem suas participações, mantendo uma voz imponente e um porte físico que valoriza o personagem. Gustavo Susin traz um Ruddy completamente original, mas que vence os desafios considerando o enorme carisma com o qual o ator lhe concebe. Há que se reclamar, porém, da ausência de curva dramática e da preferência por uma linha regular em que não há quebras, nem transformações nessa versão.

Frederico Vasques e Marcelo Adams conseguem com seus Horst e Max apresentar o que há de melhor em “Os homens do triângulo rosa”. Em Adams, que ganhou o Prêmio Braskem em Cena de Melhor Ator em 2015 por essa sua contribuição, há uma ironia deliciosa no início da peça que vai se tornando em uma seriedade cada vez mais obstinada. De modo belíssimo, vê-se o desenvolver do protagonista pelo atravessar das diversas situações às quais ele enfrenta. Em Vasques, que ganhou o Troféu Açorianos de Melhor Ator em 2014 por esse papel, há méritos de igual tamanho. Observa-se facilmente o modo sensível como seu Horst vai se abrindo para o amor de Max e o quanto um é importante para o outro em suas transformações. Eis dois grandes momentos dessa produção: ótimos usos das vozes, dos corpos, dos gestuais, da movimentação, das entonações.

Excelentes figurinos de Antônio Rabadan
O cenário assinado por Yara Balboni tem ótimo resultado na segunda parte da peça, mas parece perdido na abertura pela providência de espaços tão amplos quanto desformes. A trilha sonora, que foi indicada ao Troféu Açorianos de 2014, é composta por canções com melodias do célebre alemão Kurt Weill (1900-1950) e com letras escritas por Marcelo Adams. Defendida ao vivo por Elda Pires, eis um elemento belíssimo em cena que, embora não valorize a peça o suficiente, funciona muito bem em separado. O figurino de Antônio Rabadan é um dos melhores aspectos de “Os homens do triângulo rosa”. Merecem elogios, em especial, a caracterização de Greta e dos soldados pelo belíssimo cuidado com que eles aparecem em cena. O desenho de luz de Maurício Moura não tem destaques.

É muito possível que Martin Sherman não saiba para que lado do mundo fica Porto Alegre, mas isso não apaga o compromisso dos artistas locais em respeitá-lo enquanto artista criador. O direito à livre inspiração deve garantir a criação e não desculpar a redução e o vilipêndio do trabalho de outrem. Fica de “Os homens do triângulo rosa” a elogiosa intenção de colaborar com a dissipação de uma mentalidade homofóbica, os belos trabalhos de Marcelo Adams e de Frederico Vasques e o figurino de Antônio Rabadan, mas também o sinal do quanto “Bent” é uma peça que merece ser produzida na íntegra em nossos dias e na nossa cidade.

*

Ficha Técnica:
Direção: Margarida Peixoto
Dramaturgia: adaptação das obras literárias Bent, de Martin Sherman; Triângulo rosa: um homossexual no campo de concentração nazista, de Jean-Luc Schwab e Rudolf Brazda; e Eu, Pierre Seel, deportado homossexual, de Pierre Seel
Elenco: Marcelo Ádams, Frederico Vasques, Gustavo Susin, Gisela Habeyche, Alex Limberger, Pedro Delgado e Edgar Rosa
Instrumentista: Elda Pires
Figurinos: Antônio Rabadan
Cenografia: Yara Balboni
Trilha Sonora: Marcelo Ádams (Letras) Sobre Músicas De Kurt Weill
Iluminação: Maurício Moura
Operação de iluminação: Wagner Duarte
Maquiagem: Margarida Peixoto
Produção: Cia Teatro Ao Quadrado
Fotografias: Adriano Arantos